Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

N° 55 (1994: 5)


 

Viagens, Descobrimentos e Conhecimento

Colóquio Internacional

Anthropos ludens

Questões de Conhecimento relacionadas com a

Música e dança no culto de São Gonçalo de Amarante

Joanópolis e Ubatuba

24 a 28 de setembro de 1998
dir. A. A. Bispo

Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos
ISMPS/Akademie Brasil-Europa
Sociedade Brasileira de Antropologia da Música
Comissão dos Descobrimentos de Lagos

sob o patrocínio da
Prefeitura e Câmara Municipal de Joanópolis
Prefeitura de Ubatuba - FUNDART

 

SINAIS EXTERIORES DE EXPRESSÃO NA IDADE MÉDIA
E O CULTO DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE

Maria do Amparo Carvas Monteiro
Licenciada em História e Mestre em Ciências Musicais, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Professora-Adjunta da Escola Superior de Educação de Coimbra

 

O Cristianismo formou-se e cresceu na conjuntura de um mundo romano sócio-políticamente em crise e numa fase claramente descendente.

Contrariando valores próprios do mundo ocidental de então, o Cristianismo procurou desprender o Homem dos valores essencialmente materiais e terrenos, ligando-o a valores de eminente espiritualidade, para no seio divino poder alcançar a felicidade e a vida eterna.

Neste contexto - a que certamente não são estranhas as perseguições e perigos constantes a que os primeiros cristãos foram sujeitos, até alcançarem a garantia da liberdade religiosa - foram progressivamente banidas do culto cristão quaisquer atitudes que pudessem associar-se, ou mesmo apenas lembrar manifestações pagãs de prazer e de exuberância e de natureza idolátrica, propondo antes, entre outros, a humildade, a autodisciplina e o amor a Deus, na construção de uma moralidade e espiritualidade de base monoteísta.
Deste modo, atitudes ou manifestações exteriores de alegria, prazer ou divertimento que, no mundo pré-cristão, eram comuns - o riso ritual, a falta de pudor, a gargalhada, o culto de Baco e de Dionísio, etc. - foram substituídas por outras que buscaram na espiritualidade a orientação para novos caminhos, no sentido do merecimento da salvação.

Ao terreno opôs-se o celestial; ao existencial, o espiritual e transcendental; ao profano o divino.

Foi assim que os primitivos cristãos, vivendo plenamente os ensinamentos de Cristo, perspectivaram a vivência diária assente na oração, no recolhimento, na dádiva e no amor pelo seu semelhante e na contenção de gestos, palavras e atitudes.

Já a tradição judaica preconizava uma atitude de contenção do riso e outros sinais de exuberância, que sem dúvida influenciou os primeiros cristãos, cuja primeira comunidade se constituíu, em Jerusalém, logo na terceira década do século I da nossa era, reunindo em volta dos Apóstolos chefiados por Pedro, dedicando-se à oração e celebrando a partilha do pão em memória da última refeição tomada por Jesus, com os Apóstolos, na véspera da sua Paixão, apelando à conversão dos corações e administrando o baptismo aos novos convertidos.

Ao difundir os ensinamentos divinos, os primeiros pensadores cristãos debruçaram-se sobre o modo de controlar e adaptar manifestações pagãs ou atitudes excessivas ao pensamento e culto cristão.

Por exemplo, São Clemente de Alexandria, no século III, no seu tratado "Paedagogus" procurou criar um conjunto de princípios e normas de comportamento adaptadas à doutrina da Igreja, propondo que fossem excluídos da comunidade cristã aqueles cujas atitudes exteriores fossem excessivas, indignas, baixas ou apenas fúteis.

Porém, ao mesmo tempo, procurou conciliar com o pensamento cristão, expressões comuns socialmente aceites, temperando-as e adaptando-as com moderação. Deste modo, captar-se-iam mais pessoas, moralizando e padronizando os costumes.

Mas este pensamento foi substituído, mais tarde, por posições mais severas adoptadas por pensadores diversos, à frente dos quais esteve o Bispo de Constantinopla, S. João Crisóstomo (347-407), que reagiu à crise geral de valores que se verificou no seu tempo, manifestando intolerância e repudiando a generalidade das manifestações de alegria e divertimento que considerou de inspiração demoníaca e não divina.

Mas os pensadores da Igreja latina nunca foram tão longe. Por exemplo, Santo Agostinho (354-430) sempre procurou conciliar o bom humor com os ensinamentos cristãos como forma de catequizar e difundir os divinos ensinamentos (porém sem ser adepto de manifestações excessivas) tendo como objecto e (apenas na justa medida) difundir a mensagem de Deus.

O aparecimento das ordens religiosas voltadas para o recolhimento e a oração viriam reforçar, através do exemplo e da pregação, a mesma autodisciplina que deveria manter, dentro dos justos limites, os gestos e as atitudes em geral.

A Regra escrita por S. Bento de Núrcia (c. 480-547 ?), no isolamento da sua comunidade, longe da vida mundana, viria a ser seguida não só pelos beneditinos, mas também por outros mosteiros, estendendo-se à generalidade do clero regular do Ocidente.

Exortando à oração e ao recolhimento, condenou fortemente o riso, as palavras e atitudes frívolas, demonstrando grande rigor crítico relativamente às manifestações de alegria e divertimento.

O mesmo sentimento se verificava fora do ambiente claustral. Por exemplo, numa carta de 595, o bispo de Cartagena escrevia ao bispo de Ibiza: "Oxalá o povo cristão, se é que não vai à igreja ao domingo, pelo menos fizesse algo proveitoso e não se dedicasse a bailes. Seria melhor que o homem fizesse alguma coisa, ou então fosse de viagem; as mulheres, por sua vez, melhor seria que fizessem trabalhos manuais, e que não passassem o domingo em bailes e danças, fazendo com que o seu corpo, criado por Deus, sirva para excitar as paixões más.

Esta atitude de severidade e de condenação das manifestações de alegria viria a manter-se durante séculos.

Ainda no século XI, a força do Evangelho se revelava, acima de tudo, por um acto de justiça, pelo castigo divino.

Georges Duby, referindo-se a este aspecto, acentua: "(...) alguns frescos românicos mostram Cristos ferozes, segurando entre os dentes o gládio da justiça e da vitória". "(...) A este Deus senhor , a este Deus porta-gládio, a este Deus terrível, como prestar os seus serviços que ele espera e que captarão as suas graças? (...). Nesse tempo, muitos cristãos fervorosos procuravam pela peregrinação assegurar para si a clemência divina, sonhando orar um dia num dos três túmulos, o de S. Pedro, em Roma, o de Santiago , na Galiza e o de Cristo, em Jerusalém. No dizer de G. Duby, " (...) a peregrinação foi a mais perfeita e mais bem aceite das formas de ascese que o cristianismo heroicizado do século XI propunha aos cavaleiros ansiosos pela salvação ".

Uma mudança significativa, persistente e fundamentada, no que respeita à severidade e condenação das já referidas atitudes, só veio a verificar-se, no século seguinte.

Foi então que se assistiu a uma mudança decisiva no pensamento cristão ocidental, havendo mesmo quem fale num Renascimento do século XII.

Esta mudança iria continuar nos séculos seguintes. Com efeito, no século XIII, as Universidades nascentes constituíram polos de actividade intelectual que reflectiam as mudanças profundas que se operavam ao nível político, económico, institucional e cultural na sociedade feudal, envolvendo em todos estes aspectos o pensamento religioso de então.

Retomando os pensadores antigos (sobretudo Platão e Aristóteles) e dignificando certos aspectos profanos e naturais da vida quotidiana, foi-se progressivamente reconciliando o sagrado com o profano, dentro de limites moderados e aceites no mundo de então, à luz das novas linhas orientadoras do pensamento e do saber e de uma nova concepção da vida e do mundo.

No campo religioso, assiste-se a um suavizar da imagem de Deus que julga (e absolve ou castiga), para a de um Deus que perdoa e junto do qual os Santos intercedem, para o perdão e a salvação do homem.

E é neste contexto em que o humano é dignificado e o profano já não é irredutivelmente inconciliável com o religioso, que se exaltam as virtudes dos Santos e o culto da Virgem Maria.

A partir de então, verifica-se uma tolerância moderada e uma integração crescente das manifestações exteriores de alegria, gestos e atitudes, no pensamento cristão da Baixa Idade Média, numa clara (re)valorização do homem, criatura de Deus, uma simbiose de espírito e de corpo.

De tal modo se operou esta revalorização, que S. Tomás de Aquino (1224/25-1274), dominicano, eminente teólogo, profundo conhecedor do pensamento aristotélico, participando no renascimento cultural que já se verificava no século XIII, assumiu a defesa do riso moderado (mas não do riso excessivo), considerando-o lícito, próprio do Homem e a este necessário, permitindo manifestações de alegria comedidas, não ofensivas no respeito a Deus, ainda que de prazer terreno.

Segundo José Rivair Macedo, " (...) no conjunto de textos do fundador do tomismo subsiste a ideia da existência de um riso nefasto, provocado por palavras indecorosas ou imbecis". (...) Porém o riso pode também ser associado ao estado de alma plenamente positivo: a felicidade"

Assim chegámos ao tempo de S. Gonçalo de Amarante (c. 1200-1259/62), dominicano português, nascido no lugar de Arriconha, freguesia de Tagilde, do concelho de Guimarães, cidade-berço de Portugal.

S. Gonçalo estudou Ciências Eclesiásticas no Paço do Arcebispo de Braga, frequentado naquele tempo pelos jovens da melhor nobreza.

Pouco depois de ordenado Sacerdote, foi ordenado pároco de S. Paio de Vizela, do concelho de Guimarães.

Vivia com grande simplicidade, sendo extremamente caritativo para com os pobres e desafortunados. Depois de alguns anos de intensa vida paroquial, também ele foi peregrino, durante catorze anos, resolvendo visitar, a pé, Santiago de Compostela, Roma e Palestina, deixando a sua paróquia entregue a um seu sobrinho igualmente sacerdote.

Segundo o Padre Pinho Nunes, "(...) o intruso substituto apresentou ao Arcebispo Godinho cartas falsas, com as quais provou a morte de S. Gonçalo, apoderando-se dos seus bens e conseguiu ser nomeado pároco de S. Paio".

Após o regresso da Terra Santa, tendo perdido a sua paróquia e sendo desapossado dos seus legítimos bens, " (...) S. Gonçalo andou de terra em terra, em ministério de pregação popular".

Foi assim que, no ano de 1250, se fixou em Amarante, continuando a sua vida contemplativa e sua acção doutrinária e caritativa, deixando o seu nome ligado a algumas das principais edificações desta cidade.

S. Gonçalo é o mais popular dos Santos portugueses, depois de Santo António. Ele é santo no coração do povo e por este assim tratado, já no século XIV, embora só em 16 de Setembro de 1561, tivesse sido beatificado e o seu culto permitido a partir do mesmo ano, pelo Papa Pio IV, a pedido do rei D. Sebastião.

No tempo dos Filipes foi pedida a sua canonização mas esta pretensão foi recusada pelo rei. Impedida a canonização e num ambiente de resistência aos castelhanos, aumentou mais ainda a devoção popular.

Segundo o Padre Pinho Nunes, " (...) o Papa Clemente X estendeu a toda a ordem de S. Domingos a concessão feita por Pio IV, de celebrar a festa de S. Gonçalo, com a categoria de Beato (...) ".

O culto de S. Gonçalo ultrapassou as fronteiras portuguesas, alargando-se a Espanha, Itália e ao Brasil, para onde foi levado pelos emigrantes portugueses, sobretudo os minhotos.

Aparece, no imaginário popular como um santo piedoso, peregrino e milagreiro. Porém, simultâneamente, surge a descrição de S. Gonçalo galhofeiro, divertido ou mesmo mundano, também conhecido por casamenteiro das velhas, num culto de características quase pagãs que, na opinião do referido autor, constitui uma visão adulterada da " (...) sua figura austera de apóstolo, de sacerdote e de homem de penitência (...) ".

Contrastando com a condenação tendencial, na Alta Idade Média, de certas atitudes exteriores de exuberância, o século XIII compatibilizou-as com o pensamento cristão, moldando-as, de tal modo que, nos finais da Idade Média, viriam a ser toleradas, disciplinadas e aceites pela hierarquia da Igreja.

Mas, à margem da proibição ou da tolerância, as diversas classes sociais nunca deixaram de se manifestar nos adros, nas casas senhoriais, na corte e nos próprios mosteiros.

De qualquer modo, a conjuntura sócio-cultural e religiosa do século XIII era propícia ao desenvolvimento de manifestações de cunho profano, às quais a música não podia deixar de estar associada.

Embora os concílios e as cartas pastorais dos bispos condenassem repetidamente o canto e a dança profanas (sobretudo esta última) pela obscenidade e por representarem um vestígio da cultura pagã, o carnaval e as manifestações do tipo carnavalesco mantinham viva, na Idade Média, a tradição do livre divertimento colectivo.

Mesmo as peregrinações medievais, constituíndo uma clara afirmação dos sentimentos religiosos dos povos ocidentais, incluindo o português, serviram ao mesmo tempo para a diversão dos namorados e a folgança dos mendigos, a difusão de canções de romeiros, trovadores e jograis de diversos países, o que certamente influenciou a música peninsular.

Já iam distantes os primeiros séculos do cristianismo em que " (...) só a voz humana, a voz nua, era suficientemente pura para elevar ao Céu uma piedosa oração", pois os instrumentos musicais eram considerados herança da antiguidade pagã.

Mas isto não impediu que, gradualmente, o instrumentário (violas, harpas, cítaras, alaúdes, flautas, gaitas de foles, órgãos portáveis, etc.) viesse ornamentar pórticos, paredes e altares de catedrais, através da escultura, da talha, da pintura e da arte dos vitrais, evidenciando novas formas de expressão artística, conduzindo à sua integração nas festas e celebrações de cunho religioso (cortejos, peditórios e procissões), para além do carácter profano que lhe era inerente.

Bibliografia consultada

ALEXANDRIE, Clément de - Le Pagagogue, Ed. e trad. Marguerite Harl (Sources chrétiennes, 70), Paris, Du Cerf, 1960.
ALVES, Artur da Mota - O Brasão da vila de Amarante, Amarante, Ed. do Tâmega, 1993.
AMEAL, João - Santos Portugueses, Porto, s.e., 1956.
BARRACLOUGH, Geoffrey - Os Papas na Idade Média, Lisboa, Ed. Verbo, 1972.
BOSSY, John - A Cristandade no Ocidente (1400-1700), Lisboa, Ed. 70, 1990.
CARDOSO, António - S. Gonçalo de Amarante, Amarante, C.M.A., 1978.
CHAUNU, Pierre - O Tempo das Reformas (1250-1550), Lisboa, Ed. 70, 1993.
CUESTA, Ismael Fernandez de - La Historia de la musica española 1. Desde los orígenes hasta el "ars nova". Parte primeira, Del Paleolítico a la romanización, 1988, p. 171.
DUBY, Georges - O Tempo das Catedrais (980-1420), Lisboa, Ed. Estampa, 1988.
LE GOFF, Jacques - Os Intelectuais da Idade Média, 2ª ed., Lisboa, Gradiva, 1993.
LE GOFF, Jacques (et allii) - O Homem Medieval, Lisboa, Ed. Presença, 1990.
MACEDO, José Rivair - Christus Agelastus: O riso e o pensamento cristão na Idade Média, in "Veritas", nº 3, 1997.
MACHADO, António de Sousa - Amarante Medieval, Porto, Ed. do Autor, 1979.
MAGALHÃES, Arlindo - S. Gonçalo, História ou Lenda ?, Amarante, Amarante Magazine, 1995.
OLIVEIRA, Ernesto Veiga de - Instrumentos Musicais Populares Portugueses, Lisboa, F.C.G.1982
PINHO, José de - Sur les survivances du culte phallique dans les fêtes en l’ honneur de Saint Gonçalo de Amarante, Paris, 1931.

 

zum Index dieser Ausgabe (Nr. 55)/ao indice deste volume (n° 55)
zur Startseite / à página inicial