Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

N° 54 (1994: 4)


 

Comemorações de Vasco da Gama

Colóquio Internacional

Anthropos ludens

Questões teórico-científicas relacionadas com a

Música e dança no culto de São Gonçalo de Amarante

Joanópolis e Ubatuba

24 a 28 de setembro de 1997
dir. A. A. Bispo

Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos
Sociedade Brasileira de Antropologia da Música
Comissão dos Descobrimentos de Lagos

sob o patrocínio da
Prefeitura e Câmara Municipal de Joanópolis
Prefeitura de Ubatuba - FUNDART

 

Biênio Vasco da Gama

 

INFLUÊNCIA DAS LITERATURAS INDIANAS NO OCIDENTE ESPECIALMENTE NA IDADE MÉDIA

Margarida Correa de Lacerda, Lisboa

 

No tempo de Dario, imperador da Pérsia, Scilax parece ter andado pela Índia por ordem do imperador e crê-se ter sido ele a primeira pessoa a referir-se ao Oriente. Seguidamente Heródoto dá-nos alguma informação, embora incompleta, pois para leste do Indo nada conhecia.

Quando das conquistas de Alexandre Magno, maior informação é trazida que alguma influência teve na Europa de então. Nessa altura Selecus Nicator, fundador de uma dinastia, teve contactos, nem sempre pacíficos com o imperador Candragupta Maurya, referido pelos gregos como Sandrakotos. Seleucus foi como embaixador a Pataliputra pelos gregos chamada Palibotra. A sua obra, da qual nos chegaram fragmentos foi notável.

Subsequentemente as obras de Megástenes foram importantes e essas tiveram influência nas de Estrabão, Diodurus e Plínio além de outros autores da antiguidade clássica. Todo o conhecimento àcêrca da Índia mesmo até para além do descobrimento do caminho marítimo para a Índia por Bartolomeu Dias, que dobrou o Cabo da Boa Esperança e terminado por Vasco da Gama gloriosamente com a sua chegada à Índia ha precisamente cinco séculos em 1498, era baseado em Magástenes.

Houve, no entanto, durante a Idade Média viajantes que se aventuraram pelo Oriente misterioso dos quais se destaca Marco Paulo o Veneziano que nos deixou o seu famoso livro.

Os contactos indirectos deram se sempre através dos séculos como mais tarde viu a provar-se. A influência da Índia nas literaturas europeias do Ocidente, principalmente durante a Idade-Média tem sido tema de estudos brilhantíssimos assinados pelos nomes mais ilustres da cultura europeia desde o século passado até aos nossos dias, e apesar disso, de quando em quando aparece mais alguem que não pôde resistir ao seu fascínio. É, decerto, um tema aliciante este da influência de literaturas tão afastadas no tempo e no espaço nas quais se encontram os mesmos motivos glosados de maneira semelhante, adaptados a culturas tão diferentes, e no entanto com a mesma aceitação.

Na verdade foi a Índia a fonte longingua de inspiração literária dos contos, apólogos, romances de cavalaria, gestas, isopetes e lais que tanto encanto deram à época medieval.

Menendez y Pelayo, erudito espanhol, explica o facto de no caso dos fabulários - a moral neles encerrada não ser muito elevada nem muito estrita, de caracter utilitário, humana e não religiosa, na qual a manha, a astúcia teem um grande papel e, por esse motivo de não estar ligada a uma religião se adaptou tão fàcilmente a diversas fés e civilizações.

Essas fábulas tiveram desde muito cedo influência no Ocidente e o mesmo douto Menendez y Pelayo relata o facto de um dos contos do fabulário intitulado Kalilah e Dymnah ter sido recitado por Ricardo Coração de Leão em 1195, ao censurar os príncipes cristãos que não se queriam armar para a cruzada, conto que certamente teria aprendido na Palestina pela boca de algum árabe.

Entre as causas da expansão das fábulas pode contar-se, segundo Befey cit. por Keith-Falconer a dominação mongólica por duzentos anos na Europa, a literatura arábica e talvez a judaica.

Adentro desta influência indiana nas literaturas europeias teem principal papel os fabulários assim como a lenda do Buddha, a qual assumiu nas literaturas ocidentais a forma de a história de Barlaam e Josaphate, dois santos, ou melhor ambos sendo o reflexo da forma do Buddha em vestes cristãs para propagar a fé do Cristo, à qual nos referimos prèviamente ao publicar um manuscrito medieval portugues sobre o assunto. Ambos os temas fizeram uma peregrinação paralela na sua tragetória de leste para oeste. Ambos passaram e "visaram os seus passaportes" nos países que atravessaram como disse Max Müller no seu belo "Ensaio sobre a migração das fábulas" e esse passaporte foi encontrado "parfaitement en règle" como ele diz.

É bem conhecida a peregrinação destas histórias e do papel nelas desempenhado pelos árabes que as transportaram.

A origem dos fabulários indianos é uma grande colecção o Tantrakiyika de onde teria derivado a colecção dos cinco tratados o "Pancatantra".

Segundo a tradição houve em tempos recuados um rei tão poderoso que "os seus pés eram ornados com os reflexos da joias das testas coroadas que lhe prestavam reverência". Esse rei tinha tres filhos que para sua desgraça eram tão estúpidos que não eram capazes de tomar conta dos vastos reinos de seu pai e este lamentava-se amargamente dizendo que mais teria valido não ter descendentes ou antes, que os filhos tivessem morrido à nascença, tão incapazes eram de aprender cousa alguma.

Reunido o conselho os seus ministros conselheiros sugeriram que fosse chamado um santo homem, um asceta que vivia na floresta chamado Visnusharman pois, dada a sua sabedoria, talvez fosse capaz de ensinar algo aos príncipes.

Visnusharman aceitou o encargo e transmitiu aos príncipes a arte de governar, ensinando-os como adquirir amigos, a vencer inimigos etc, tudo por meio de fábulas depois compiladas nos cinco tratados- o Pancatantra.

Não nos surpreende que estas histórias nascidas na Índia longingua se tenham adaptado às literaturas variadas pelas quais passaram e deixaram uma versão. As outras colecções de fábulas tais como o Hitopadesha (conselho salutar), vertida para portugues por Monsenhor Sebastião Rudolfo Dalgado, e outras variantes indianas, as fábulas de Bidpai ou Pilpai, a colecção conhecida por Kalilah e Dymnah (em sãoscrito Karataka e Damanaka - nomes dados a dois chacais), a versão siríaca, a latina Directorium Vitae Humanae, e por fim aquela coeva de Afonso X de Leão e Castela em castelhano, anónima traduzida directamente do árabe que parece datar de 1251 e segundo Keith-Falconer a versão latina de Raimund de Béziers teria tido nela a sua origem, feita para a rainha Joana de Navarra mulher de Filipe o Belo. Teria sido concluida cerca de 1313, e o seu autor teria tido tambem conhecimento da versão latina de João de Cápua, judeu converso. A citada versão de 1251 teria sido uma das fontes do "Livro dos Exemplos do Conde Lucanor e de Patrónio" da autoria de Don Juan Manuel, sobrinho do rei D. Afonso X o Sábio - ele próprio, rei, traduziado árabe para castelhano.

Na nossa literatura portuguesa temos um exemplo flagrante dessa influência indiana detectada por Guilherme de Vasconcellos-Abreu, primeiro professor de sãoscrito na Universidade de Lisboa, na obra de Gil Vicente, o fundador do teatro portugues.

Gil Vicente, que se refere a si próprio num dos seus autos como "hum Gyl...hum que não tem hum ceytil e faz os aitos a el-Rei..." essa personagem algo enigmática que não sabemos ao certo onde e quando nasceu, talvez em 1470 tem o mesmo nome do autor da maravilhosa peça deourivesaria lavrada em ouro e esmaltes, peça única que é a famosa custódia de Belem em estilo manuelino. Seria ele o lavrante, o ourives da casa real e tambem o "Mestre da Balança" ou seja aquele que estava encarregado do cunho da moeda"

O pouco que dele sabemos é unicamente através dos seus autos ou aitos como ele diz.
Escreveu entre 1502 e 1536 tanto em portugues como algum latim à mistura e castelhano pois essa língua era tambem falada na côrte visto as rainhas muitas vezes virem de Espanha. Escreveu 44 peças teatrais algumas de caracter religioso, outras épicas, populares, comédias, etc. As suas personagens são autênticas, jocosas, sarcásticas, irreverentes e certo lirismo popular transparece nas suas obras.

Gil Vicente foi o dramaturgo de uma côrte brilhante do início do século XVI e embora tivesse vivido numa época renascentista ele não se deixou contagiar pelas novas correntes vindas da Itália e permanece um autor de cunho medieval.

As suas peças foram representadas na côrte de tres reis: D.João II, D. Manuel I e D. João III.

Na ocasião de um casamento real, do nascimento de um príncipe, nas matinas do NAtal havia sempre a representação de um dos seus autos.

Entre as causas da difusão das fábulas no Ocidente Benfey citado por Keith-Falconer crê que a dominação da Europa por 200 anospelos Mongois pode ser levada em conta assim como as literaturas dos árabes e dos judeus.

Menendez y Pelayo na sua obra sobre as origens da novela diz que os "fabliaux", palavra usada na Picardia para designar os fabulários, assim como os assuntos tratados em Patronius e Apuleyus são umas versões populares arcaicas de origem oriental, especialmente indianas que derivaram do sãoscrito através das formas linguísticas vulgares, os prácritos, as versões persas arcaicas, as siríacas e as arábicas.

Uma grande colecção de fábulas, perdida, ao que parece, foi traduzida por Barzöe, médico do rei Anurshurwan (531-579), para pahlevi (persa arcaico) e deste para siríaco; depois para o árabe com o título "Kalilah e Dymnah" por Ibn-al-Mokaffa, cerca de 750 da era cristã e daí por deante. Nesta última versão o autor é designado por Bidpai ou Pilpai.

Foi da versão arábica de al-Mokaffa que derivou a castelhana antiga do século XIII. Esta mesma versão arábica foi traduzida para hebreu e desta para latim por João de Capua, judeu converso.

Mas … deixemos esta cadeia de traduções sucessivas, que são muitas. Benfey, citado por Louis Renou disse que o livro mais difundido no mundo, a seguir à Bíblia, foi o Pancatantra, que foi traduzido em cêrca de 60 línguas contando umas 200 versões.

A tradução castelhana feita directamente da versão arábica Kalilah e Dymnah a que nos referimos atrás foi a que inspirou Don Juan Manuel autor do Livro de Patronio ou Conde Lucanor no qual o conto do sonho do brámane é transformado em "O que aconteceu a uma mulher que dizem chamar-se Dona Truhana".

Neste conto D. Truhana vai levar à cabeça um pote cheio de mel para vender no mercado. Entretanto vai fazendo planos sobre o que fará com o dinheiro. Comprará ovos e terá galinhas; vendendo-as comprará carneiros e assim por deante até que ficará rica e passeará pelas ruas acompanhada pelos filhos, noras e genros e toda a vizinhança dirá como foi que esta mulher que era tão pobre se tornou tão rica e com a satisfação que sentia bateu com a mão na testa fez cair o pote que se partiu e entornou todo o mel. Então Dona Truhana se lamentou por terperdido toda a sua fortuna.

A história original em sãoscritoé o sonho do Bramane que reza assim: um pobre bramane a quem tinha sido dada uma refeição feita de farinha, guardou a que sobrou num jarro e deitou-se suspendendo-o à cabeceira. Entretanto pensou: quando vier a seca e houver fome esta farinha valerá bemuma cem rupias e com elas poderei comprar cabras; quando tiverem cabritos, ao fim de cinco anos poderei ter umas 400 cabras; com a sua venda comprarei 100 vacas que darão leite e manteiga; em seguida comprarei cavalos. Com tantos lucros farei uma bela casa e um rico bramane virá oferecer-me a filha em casamento e terei servos e servas. A mulher dar-me-á um filho varão que quando chegar à idade de brincar e saltar nos meus joelhos poderá aproximar-se dos cavalos e, para chamar a atenção da mulher ocupada nas lides caseiras o sonhador levanta o cajado, dá uma pancada no jarro que se parte e espalha a farinha por cima de si.

A nossa história, tratada por Gil Vicente faz parte de um auto endereçado às matinas do Natal que parece ter tido o seguinte título: Os mistérios da Virgem.

Foi este auto escrito para ser representado antes da meia noite na véspera do Natal durante as horas que precedem a Natividade; um grupo de pastores, que de acôrdo com a tradição traz presentes ao Salvador recem nascido, reune-se para esperar o nascimento de Jesus.

O auto começa por um sermão pregado por um monge de grande erudição de mistura com apartes cheios de humor. Nossa Senhora aparece vestida de rainha ladeada por damas que representam a Prudência, a Pobreza, a Humildade e a Fé, José e músicos celestes. As senhoras estudam pelos seus livros e começam um diálogo sobre as profecias dos evangelhos.

Entretanto o Anjo Gabriel saúda a Virgem em belos versos anunciando-lhe que irá ser a Mãe do Cristo.

Após esta cena os pastores reunem-se para esperar o nascimento do Senhor e falam àcerca do seu gado parte do qual anda perdido.

É então que o famoso episódio começa cheio de vivacidade quando a pastora responsável pelo gado ao dar conta do que se tem passado confessa que as rezes se teem perdido ou por doença, ou dizimadas pelos lobos ou raposas ou perdidas pelas frágoas da serra. No entanto ao ser despedida pede que os seus serviços sejam pagos e recebe do patrão um pote de azeite com os desejos de felicidades.

A nossa heroina que se chama Mofina Mendes - Vasconcellos-Abreu notou que tanto ela, Mofina, como o brámane do Pancatantra são ambos chamados de infelizes pois ele chama-se Svabhavakrpana que quer dizer infeliz por sua própria natureza, o que só acontece nestas duas fábulas, acaba por dar o nome ao auto que passou a chamar-se Auto de Mofina Mendes.

A nossa Mofina como iamos dizendo fica feliz com a paga e começa a fazer planos deste modo:

Vou-me à feira de Trancoso
logo, nome de Jesu,
e farei dinheiro grosso

Do que este azeite reder
comprarei ovos de pata,
que he a cousa mais barata
qu‘eu de lá posso trazer,
E estes ovos chocarão;
cada ovo dará hum pato,
e cada pato hum tostão,
que passará de hum milhão
e meio, a vender barato.
Casarei rica e honrada
por estes ovos de pata,
e o dia que for casada
sairei ataviada
com hum brial d‘escarlata,
e diante o desposado,
que me estará namorando:
virei de dentro bailando
assi dest‘arte bailado,
esta cantiga cantando.

Estas cousas diz Mofina Mendes com o pote de azeite à cabeça e andando enlevada no baile, cai-lhe e diz:

Paio Vaz
Agora posso eu dizer,
e jurar e apostar,
qu‘es Mofina Mendes toda.
Pessival
E s‘ela baila na voda,
qu‘está ainda por sonhar,
e os patos por nacer,
e o azeite por vender,
e o noivo por achar,
e a Mofina a bailar;
que menos podia ser"

Segundo Vasconcellos-Abreu a nossa Mofina foi inspirada na Dona Truhana e tambem na versão espanhola do Directorium, tem um cunho mais vivo e gracioso, mais naturalidade e é uma personagem mais real que a sua antecessora Dona Truhana.

Menendez y Pelayo refere o seguinte com respeito à prioridade da Espanha no seu conhecimento: "Conviene decir dos palabras acerca de estas colecciones puesto que precisamente España las recebio mas pronto que el resto de los pueblos occidentales, les dio primero vestidura latina y las hizo hablar, tambien por primera vez en lengua vulgar."

Ora quem realmente fez falar a heroina em língua latina vulgar, quem a fez cantar e bailar e até fazer cair o famoso pote de azeite, foi de facto Gil Vicente pondo-a no proscénio descrevendo como iria vestida na boda na qual até o desposado a estará namorando, cantando e bailando ao sair de casa.

É na verdade, de todas as versões conhecidas a mais real, a que tem mais visos de autenticidade a da nossa pastora Mofina que termina dando aos outros pastores filosoficamente aquela nota de transitoriedade dos prazeres terrenos na última estrofe que entoa ao retirar-se
Por mais que a dita m‘engeite,
pastores, não me deis guerra;
que todo o humano deleite,
como o meu pote de azeite,
ha de dar consigo em terra.

 

Bibliografía

Dalgado, Monsenhor Sebastião Rodolpho. "Hitopadexa ou instrução útil". Versão portuguesa feita directamente do original sanscrito por. Com uma introdução por G. de Vasconcellos-Abreu. Lisboa, 1897.

Hertel. "Panchatantra" Text (Tantrakyayika) "Purnabhadra‘s Panchatantra" Text. Harvard Oriental Series. Lanman vols. 11,14. Cambridge MAss. 1908-1915.

Keith-Falconer I.G.N.. "Kalilah and Dymnah or Fables of Bidpai". Cambridge U.P. 1885.

Lacerda, M.C. de. "Vida do Honrado Infante Josaphate Filho del Rey Avenir". Versão de Frei Hilário da Lourinhã... Lisboa 1963.

La Fontaine. "Fables de La Fontaine". 270 illustrations de J.B. Oudry. Paris.

Manuel, Don Juan. "El conde Lucanor". Sevilla 1575.

Menendez-y-Pelayo, Don Marcelino. "Origenes de la Novela" Tomo I. Introdução XV "El Apologo y el Cuento Oriental". Madrid, 1905.

Müller, Max. "Selected Essays on Language, Mythology and Religion" V. "On migration of Fables", IX. London 1881.

Renou, Louis. "Les Littératures" chap. X de "L‘Inde Classique" vol. II "La Littérature Narrative". Paris, Hanoi, 1953.

Vasconcellos-Abreu, Guilherme de. "Os contos, apólogos e fábulas da India. Influência indirecta no ‘Auto da Mofina Mendez‘ de Gil Vicente". Lisboa 1902.

Vicente, Gil. "Obras Completas" com prefácio e notas do Prof. Marques Braga. 3a edição. Lisboa 1958.

 

zum Index dieser Ausgabe (Nr. 54)/ao indice deste volume (n° 54)
zur Startseite / à página inicial