Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 30 (1994: 4)


 

Teatro em Rio Branco. Foto A. A. Bispo. Acervo ISMPS e.V.

Ciclo de estudos

Música nas relações culturais euro-brasileiras

Sistematização e integração dos estudos culturais euro-brasileiros

- Amazônia e Brasil Central -

um projeto do ISMPS e.V. /I.B.E.M.

sob a direção de

A. A. Bispo

com o apoio de órgãos oficiais e particulares, universidades e museus
desenvolvido concomitantemente com o projeto
As culturas musicais indígenas no Brasil
do Institut für hymnologische und musikethnologische Studien

realizado com o apoio do
Serviço das Relações Exteriores da Alemanha


- Acre - 

 

O ACRE NA MUSICOLOGIA:
CULTURAS MUSICAIS INDÍGENAS E MÚSICA OCIDENTAL

(tradução de texto de curso, Akademie Brasil-Europa)

Antonio Alexandre Bispo

(partes, sem notas e bibliografia)

 

O Acre é uma das regiões menos consideradas do ponto de vista histórico, científico-cultural e etnológico na pesquisa musicológica do Brasil. A razão dessa situação absolutamente insuficiente da pesquisa não reside apenas na distância que separa esse Estado dos grandes centros culturais do Brasil e nos poucos anos de existências das instituições locais; ela deve ser procurada, também, nas condições especiais da história e do presente dessa região e que exigem trabalhos interdisciplinares.

O interesse do musicólogo orientado historicamente não é despertado para o Acre por nenhum florescimento da vida musical de nível artístico na época colonial, como em Minas Gerais, ou na época do Império, como em Belém ou Manaus. A historiografia musical tem de se contentar com a pesquisa de uma vida musical aparentemente modesta em cidades formadas somente no século XX. Ela deve, porém, estar em condições de avaliar justamente as atividades musicais regionais sob o pano de fundo da situação espiritual e cultural pioneira de indivíduos que vivem na isolação e sob condições extremamente difíceis. Na época da riqueza da borracha, os imigrantes, novos habitantes do Acre, procuraram manifestar os frutos de seu trabalho em expressões exteriores de bem-estar, utilizando-se para isso também da música. Assim, como A. Perl observou na Barraca Amélia, em 1890, apesar da rudeza dos costumes e da violência por toda a parte, andava-se aos domingos pela floresta com "casaco e calça preta, com chapéu preto, colete branco e botas de verniz". Também as solenidades e os projetos futuros do Estado Independente do Acre sob Galvéz, de curta duração, dão testemunho da necessidade de exteriorização da nova riqueza adquirida, como Leandro Tocantins descreve na sua obra "Formação Histórica do Acre", uma obra já clássica da historiografia. Tem-se necessidade de pesquisas mais pormenorizadas para que se possa esclarecer até que ponto esse florescimento temporário da vida musical local pode ser comparado com a de Manaus e Belém.

A tendência à imitação da vida social mais elevada, de influência francesa, do Rio de Janeiro, permaneceu viva em determinados círculos da sociedade de Rio Branco nas décadas de vinte e trinta, apesar da decadência econômica do Território. Sob o ponto de vista musical, deve-se salientar sobretudo a prática das serenatas, da música de violão e das modinhas com acompanhamento de violão, assim como a recepção da música popular da época, tais como tangos, maxixes e canções de Gastão Forment, músicas de Joubert de Carvalho e Ernesto Nazareth, entre outros.

Xapuri - denominada segundo a tribo que viveu no passado às margens do rio do mesmo nome - foi uma localidade na qual, no passado, os trabalhadores da floresta do Alto Acre iam passar as suas horas livres, inclusive com atividades musicais. A povoação viveu o conflito entre brasileiros e bolivianos, tendo sido elevada a cidade em 1905, transformando-se, em 1912, em sede de uma unidade administrativa. A presença de funcionários do Govêrno deu origem a modesta vida cultural.

Sena Madureira, fundada em 1904 como sede do Departamento do Alto-Purus, tornou-se, em 1908, capital do Território, com importantes funções administrativas. Em 1919, passou a ser sede da Prelatura do Alto-Purus e do Acre. A localidade teve uma época de apogeu de curta duração, de modo que a sua vida musical até 1917/1918 mereceria ser considerada mais a fundo na historiografia da música acreana.

Cruzeiro do Sul, fundada em 1904, chegou a ter, como capital do Departamento do Alto-Juruá, um teatro e várias sociedades. 

Rio Branco, desde 1920 capital do Acre, originou-se em terras do seringal "Empresa", fundado em 1882. A localidade, elevada a cidade em 1904, foi denominada Penápolis (1909), recebendo a atual designação a partir de 1912. Um testemunho da vida associativa da cidade no passado é a Sociedade Recreativa Tetamen. Hoje, a vida cultura local é dominada pela mídia, sobretudo pela televisão e pelo rádio.

A pesquisa musical deve dedicar-se, além da consideração dessa vida musical de cunho erudito que se apresenta à primeira vista como sendo modesta, e à qual pertenceram as bandas de música do antigo Território, também à música popular nas suas mais diversificadas expressões. As tradições folclórico-musicais dessa região são, porém, praticamente desconhecidas no estudo do Folclore brasileiro. Como a exploração e a colonização da região ocorreram apenas em épocas mais recentes, aqui não ocorrem tantos costumes, danças, cortejos e formas de devoção do populário católico como em outras regiões da Amazônia. A pesquisa da cultura popular, porém, parece não ter ainda se conscientizado do fato de que esse estado da floresta amazônica traz profundas marcas do distante Nordeste do Brasil, devendo ser estudado em grande parte a partir da perspectiva das tradições musicais vigentes sobretudos no Nordeste.

(...)

A pesquisa musical do Acre não pode ser separada da evolução geral dos anseios científico-culturais de antropólogos e indigenistas, hoje tão engajados, tais como José P. Carvalho, Terri Aquino, José Carlos R. Meireles, Ronaldo Oliveira, Antonio P. Neto, Oswaldo Cid e muitos outros. A discussão dos últimos anos é marcada profundamente pelos problemas ecológicos e pelas ações de defesa da floresta.

A sociedade de música na Fundação Cultural do Acre, assim como o coro na Universidade Federal sob a direção de Enock da Silva Pessoa, dedicam atenção à problemática atual dos habitantes da floresta. Assim, em 1988, iniciou-se com o Festival Acreano da Música Popular, organizado por Heloi de Casto e João Veras. Os músicos do Acre deveriam unir-se, segundo os organizadores, no canto de defesa da floresta dos seringueiros e índios, entoando um verdadeiro grito de desespero dos povos da floresta pela sua preservação. Em muitas canções lamenta-se a derrubada das matas, vista como resultado de ambição desmesurada, avidez e falta de respeito para com a natureza e o homem.

Representativa para o questionamento atual e as tendências relativas à cultura no Acre é o artigo de fundo dedicado ao tema "Amazônia e Integridade Cultural", publicado em 1998 na Gazeta do Rio Branco e no primeiro número da revista cultural "Aquiry", órgão da Fundação Cultural e do Instituto do Meio Ambiente do Acre. Nesse artigo, toma-se conhecimento sobretudo do pensamento de Francisco Gregório da Silva Filho, presidente da Fundação Cultural do Acre. Trata-se principalmente do relacionamento recíproco entre a sociedade e a natureza, assim como das questões que daí surgem relativamente às ciências e à prática da cultura. Pelo relativo isolamento da região, os intelectuais e os artistas da região teriam a necessidade de sentir-se à altura do desenvolvimento contemporâneo dos grandes centros. Por isso, distanciariam-se do próprio contexto cultural. Partindo-se da constatação de que há diversos contextos culturais no Acre, faz-se um apelo aos produtores de cultura para que valorizem essa diversidade e contribuam, assim, para a superação de tendências a uma uniformização nacional da cultura. As diversas formas de criação cultural da região deveriam também trazer conseqüências para a vida escolar. Reconhecendo-se a diversidade cultural, ter-se-ia também uma revalorização das formas de expressão artística dos índios e dos seringueiros, assim como de manifestações alternativas da cultura.

Na pesquisa musical, o problema das línguas e da identidade cultural a elas vinculada surge como de particular relevância. Ainda que o idioma materno da maioria da população do Acre seja o português, há, porém, ainda 12 outras línguas, faladas por grupos populacionais menores: Kaxinawá, Poyanawa, Shawanawa, Yawanawá, Kaxarari, Jaminawa, Kampa, Mãtxineri (ou Machineri), Apurinã, Kulina, Shanewa e Katukina. Devido a diferentes fatores, muitos grupos indígenas perdem gradualmente a sua língua materna. Várias instituições e pessoas preocupam-se com esse problema, entre outras, a União das Nações Indígenas, a Comissão Pró-Índio, o núcleo de coordenação de assuntos indígenas da Fundação Cultural do Estado, o Conselho Indigenista Missionário, a Operação Anchieta e as igrejas evangélicas de confissão luterana.

A importância da conservação dos idiomas indígenas resulta sobretudo do fato de que são veículos de transmissão dos contos dos mais velhos, das tradições orais que fundamentam as culturas tribais. Tratando-se de possibilitar que as crianças aprendam a sua própria língua ao lado do português, levanta-se a questão de como considerar as línguas indígenas nas escolas. Desde 1983, realizam-se cursos de formação de professores indígenas. Uma transmissão de idiomas indígenas pressupõe, porém, que elas sejam escritas, o que acarreta problemas concernentes ao alfabeto, à ortografia, à realização de registros lexicográficos, à integração de novos conceitos, entre muitos outros, e que somente podem ser solucionados em trabalho conjunto de lingüistas e etnomusicólogos.

Exemplos da conexão entre questões lingüísticas e etnomusicológicas na preocupação atual pela conservação das línguas indígenas foram fornecidos por Elder José Lanes, colaborador da Comissão Pró-Índio. Esse pesquisador, em várias estadias no interior do Acre, realizou gravações musicais, mostrando-se particularmente disposto a colaborar com o desenvolvimento dos estudos das culturas musicais indígenas do Acre no âmbito deste projeto. Com base em cantos gravados em outubro de 1992 entre os Mãtxineri da aldeia Extrema no Rio Iaco, demonstrou os principais problemas que, segundo a sua opinião, deveriam ser considerados prioritariamente pela pesquisa musical. Trata-se de cantos de uma velha índia de nome Joana, que apenas sabe falar a sua língua tribal, da família Aruak, e que é uma das poucas pessoas que ainda conhecem essas antigas canções. Os registros foram feitos a pedido do professor da escola da aldeia, o índio Jaime do Pelú, que os queria utilizar para fins didáticos. Partes dos contos de Joana já tinham sido incluidas na cartilha escolar para que as crianças pudessem aprender a língua e as tradições consuetudinárias. A cantora era uma conhecedora competente não apenas do antigo idioma como também da tradição de canto, pois ela era uma das raras mulheres que "rezavam cipó" e que auxiliavam o pajé. A língua tribal transmite-se, assim, sobretudo através de cantos que representam orações pronunciadas no contexto de práticas executadas após o consumo dessa bebida ("cipó").

O problema da conservação de línguas tribais vinculadas com o canto não diz respeito apenas a grupos da família Aruak; ele também se observa no âmbito da família Pano. E. J. Lanes tratou da questão com base em outra gravação, realizada por ele entre os Yawanawa, a 30 de agosto de 1993. Trata-se de um conto concernente à Criação, entoado pelo velho pajé João Ferreira da Silva em estado de consciência transformada após o consumo do "cipó", considerado como pré-condição para o canto desses relatos concernentes à Gênese. Segundo Lanes, esse pajé entoou-os numa forma arcaica da língua tribal, não mais inteligível, vista até mesmo como sagrada. Esse exemplo dá testemunho de como a problemática da conservação dos idiomas nativos, intimamente ligados com o canto, não podendo ser separada da consideração dos conceitos religiosos e do consumo do "cipó".

Com base em outra gravação, realizada entre os Yawanawa no Rio Gregoria, em agosto de 1993, E. J. Lanes deu um exemplo de reza de Jenipapo sob a ação do "cipó". Depois de terem as mulheres preparado tinta de Jenipapo para que as crianças fossem pintadas, o rezador, deitado na sua rede, com uma cuia do jenipapo, entoou o canto-oração. As crianças estavam sujeitas a várias observâncias, não podendo comer carne, não pegar sol, etc.. Tanto os Yawanawa como os Jaminawa entoam essas rezas sobre a cuia com Jenipapo. Os Kaxinawa não conhecem essas orações ou não as cultivam mais, embora pertençam a essa mesma família lingüística. Assim, segundo Lanes, um dos mais profundos conhecedores dos mistérios do cipó é um índio idoso que vê agora com desprêzo esses antigos cantos após a sua conversão a uma seita protestante de missionários norte-americanos que atuam em várias aldeias.

(...)

A pesquisa da música e das concepções musicais dos índios do Acre, que são, de acordo com os dados até hoje conhecidos, parte integral do seu universo religioso, deve ocupar-se em medida muito maior do que em outras regiões com técnicas destinadas à criação de estados alterados de consciência através do uso de drogas produzidas com vegetais. Essas práticas já transpuseram há muito os círculos estreitos das culturas indígenas, nos quais encontravam-se sob o controle dos pajés e integradas em contexto ritual. Elas foram assimiladas por outros grupos da população da região e das cidades, despertando particular fascinação entre estudantes e intelectuais. Aqui, essas práticas perdem, em geral, a expressão sonora que as relacionam com as culturas indígenas. Esse fenômeno foi estudado pela primeira vez em estudo realizado em 1981 a respeito da forma religiosa do "Santo Dai-Me". Entrementes, essa corrente religiosa, partindo do Acre e de regiões circunvizinhas do Amazonas, sofreu modificações, transformando-se do ponto de vista de sua organização e experimentando uma grande propagação também em outras cidades do Brasil, sobretudo no Nordeste (por exemplo no Ceará), sendo conhecida principalmente sob a denominação de "União do Vegetal". Os musicólogos que querem se dedicar ao Acre e aos grupos indígenas que ali vivem não podem evitar um contacto mais próximo com esse fenômeno cultural e religioso.

(...)

 

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