Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 72 (2001: 4)


 

Brasil 2000
Colóquio/Kolloquium

J.S.BACH-H.VILLA-LOBOS
Interpretações e Perspectivas do Barroco
Deutungen und Perspektiven des Barock

31. Mai - 2. Juni 2000
Direção científica/Wissenschaftliche Leitung: Dr. A. A. Bispo
Comissão organizadora/Organisation: Dir. Dr. H. Hülskath

Akademie Brasil-Europa
Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V. Instituto Brasileiro de Estudos Musicológicos
Sociedade Brasileira de Antropologia da Música

em cooperação com/in Zusammenarbeit mit:

Musikwissenschaftliches Institut der Universität zu Köln
- Vorlesungsreihe Musik in der Begegnung der Kulturen -

 

HEITOR VILLA LOBOS EM 30 ANOS DE ATIVIDADES MUSICOLÓGICAS: CRÔNICAS E MATERIAIS (II)

HEITOR VILLA-LOBOS E A PESQUISA DA MÚSICA SACRA
Simpósio Internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", 1981
Para a apresentação do Magnificat de H. Villa-Lobos no Palácio dos Bandeirantes, Govêrno do Estado de São Paulo, sob a direção de Eleazar de Carvalho1

Dr. Antonio Alexandre Bispo

 

Crônica

Por ocasião do primeiro Simpósio Internacional"Música Sacra e Cultura Brasileira", realizado em São Paulo, em 1981, organizado pelo autor, pareceu ser de particular importâ ncia tratar dos problemas relacionados com as obras sacro-musicais de Heitor Villa-Lobos, uma vez que esse evento reuniu os principais representantes da música sacra do Brasil e do Exterior. Esse simpósio procurou oferecer uma visão global das múltiplas expressões da música sacra na história e no presente do Brasil com base no trabalho musicológico realizado nos anos anteriores. Esse evento constituiu uma das maiores realizações de cunho musicológico já realizado na América Latina, reunindo os principais representantes da pesquisa musical do Brasil e do Exterior e congregando numerosas associações, orquestras, coros e grupos folclóricos. No â mbito desse simpósio, porém dele independente, deu-se a fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia na Sala da Independência do Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

As sessões do evento incluiram concertos, apresentações em primeira audição de obras de todas as épocas do passado brasileiro, palestrras, cerimônias litúrgicas e para-litúrgicas, exposições, lançamento de livros, tombamento de edifícios históricos, recepções com autoridades eclesiásticas e governamentais, visitas a museus e excursões culturais. Esses eventos foram organizados segundo temas que cobriam vários períodos da história da música sacra no Brasil.

A sessão e o concerto de abertura, realizados no Palácio dos Bandeirantes, sede do Governo do Estado, no dia 27 de setembro de 1981, teve como título "Duas figuras máximas da música sacra no Brasil: José Maurício Nunes Garcia e Heitor Villa-Lobos". Para o programa desse concerto inaugural escolheu-se, de Heitor Villa-Lobos, o Magnificat/Alleluia (1958). As obras foram executadas pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo sob a regência de Eleazar de Carvalho, com a participação do Coral Paulistano sob a direção de Samuel Kerr e do Coral Infantil "Eco", dirigido por Teruo Yoshida.

Com esse tema, essa sessão inaugural distinguia-se da restante programação, pois era dedicada a dois compositores, representantes dos séculos XVIII/XIX e XX e não a um período ou a uma fase da história musical. A questão que previamente foi considerada e discutida durante o simpósio foi a dos critérios que justificariam a escolha desses dois nomes para uma sessão de especial caráter simbólico. Que o Pe.José Maurício Nunes Garcia fosse visto como vulto exponencial da história da música sacra no Brasil não levantava dúvidas. A própria publicação preparada para servir de base aos trabalhos do simpósio, a "Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis", dava particular realce à figura e à obra desse compositor em trabalhos de Cleofe Person de Mattos e Mons. Guilherme Schubert. Poder-se-ia porém considerar H. Villa-Lobos como "figura exponencial" na história da música sacra no Brasil? Aqui dividiam-se as opiniões.

As questões foram discutidas sobretudo com base em dados obtidos em depoimentos pessoais e de contemporâ neos de H. Villa-Lobos. Apesar de todas as opiniões em contrário, ficou decidido que H. Villa-Lobos deveria figurar, de fato, ao lado do Pe. José Maurício Nunes Garcia como um dos principais vultos da música sacra no Brasil. Essa decisão foi entendida até mesmo como um ato demonstrativo e simbólico. Ela deveria salientar a idéia de que a espiritualidade dos criadores musicais e de suas obras não deveria ser julgada exclusivamente pelos seus vínculos com os meios eclesiásticos institucionalizados dedicados à prática musical nas igrejas. Se assim fosse, não se poderia talvez considerar nenhum nome do século XX como "figura exponencial" da história da música sacra no Brasil. A maior parte das obras produzidas com a finalidade de implantar os ideais restauradores no Brasil tiveram cunho decididamente funcional, não estavam enraizadas culturalmente no país e nas suas tradições e praticamente cairam no esquecimento. Retomou-se assim uma discussão encetada por Andrade Muricy, em artigo publicado por ocasião dos 70 anos de H.Villa-Lobos, em 1957.13

Não escolheu-se, para a inclusão na programação musical do Simpósio, uma obra de Heitor Villa-Lobos que obedeceu mais de perto às prescrições sacro-musicais vigentes na primeira metade do século XX. Assim, não foi escolhida a Missa de São Sebastião, tão decantada pelos estudiosos ligados à Igreja pela sua propriedade litúrgica, um julgamento também assumido por intelectuais, críticos e regentes. Assim, essa obra tinha sido incluída, por iniciativa de Guilherme Figueiredo, no programa executado na Catedral de Chartres pela Associação de Canto Coral, em 1965. A obra selecionada, em anuência com Eleazar de Carvalho, foi o Magnificat-Alleluia do compositor.

Os critérios de avaliação de conteúdo espiritual e até mesmo da sacralidade de obras deveriam ser reconsiderados: essa era a mensagem, que a inclusão de H. Villa-Lobos no tema da sessão inaugural do simpósio queria transmitir. Jamais poder-se ia continuar a admitir que fossem consideradas como "peças religiosas, embora anti-litúrgicas".14 Também tratava-se de trazer à consciência dos pesquisadores a importâ ncia da consideração adequada e inserida no contexto histórico respectivo da obra sacro-musical de Heitor Villa-Lobos para os estudos villa-lobianos em geral.

O problema do relacionamento entre o nacional e o universal na obra de Villa-Lobos, tão discutido na musicologia,15 adquire novas elucidações através da consideração do movimento litúrgico-musical da primeira metade do século XX. A música sacra preconizada pela Igreja e em grande parte aceita por Villa-Lobos nas suas obras religiosas seguia, entre outros, o ideal da universalidade previsto no Motu proprio de Pio X.

Do ponto de vista teológico-musical, ressaltou-se o fato de que a reavaliação de critérios poderia partir de uma imagem simbólica fundamentada na bíblia: a qualidade da árvore conhece-se pelos frutos. Os frutos é que manifestam a semente, origem de uma força interior que permanece velada aos olhos, escondida, por assim dizer, no tronco da árvore. Se os frutos forem bons, - e os critérios para julgá-los encontram-se por exemplo nos dizeres do apóstolo Paulo -, então a árvore é boa; os frutos aqui representam metafóricamente as palavras, os atos e as obras imateriais criadas pelo homem. Tudo depende, portanto, da qualidade de uma força interior, que age veladamente no homem, o que é visto na tradição da linguagem simbólica conservada viva no Brasil como um fogo invisível, espiritual, diferente daquele fogo visível que se manifesta exteriormente através da força de vontade e de ação do homem. Há porém, segundo a mesma tradição, dois tipos de fogo interior, originados de dois tipos de sementes e que determinam por sua vez a qualidade dos frutos. As sementes, das quais irradiam, foram produzidas segundo a tradição bíblica pelas duas árvores do Paraíso, a árvore da vida e a árvore do conhecimento.

Nos conceitos e práticas conservados na tradição popular do Brasil, esses dois tipos surgem então como porta-luzes, como mensageiros, são representados simbolicamente por dois tipos antropológicos. Um é aquele que, como o fogo, procura a expansão através da sabedoria terrena, ávido de reconhecimento público e de bens materiais, o outro é aquele que expande-se de forma mais oculta, visando a sabedoria não-terrena, divina.

Dos frutos da árvore do conhecimento, o homem não deve comer; ele deve procurar o seu alimento espiritual nos frutos da segunda árvore, da árvore da vida. Segundo notícias obtidas da biografia de H. Villa-Lobos, o compositor correspondia a este último tipo antropológico. A sua obra, portanto, pode servir exemplarmente para considerações mais aprofundadas daquilo que pode e deve ser visto como conteúdo espiritual da criação musical.

Essas e outras reflexões tratadas no Simpósio de 1981 demonstraram a necessidade da discussão conceitual, metodológica e interdisciplinar na pesquisa da música sacra.

Texto

(Partes)

A pesquisa da música sacra é assunto muito mais complexo do que em geral se supõe. Para muitos parece que já o descobrimento de alguma obra até hoje desconhecida do passado, a sua recuperação e talvez execução justificam o emprêgo do termo. Entretanto, a pesquisa da música sacra não pode ser vista apenas do ponto de vista histórico-musicológico no sentido usual do termo. Nesse caso seria melhor que se falasse de história da prática musical nas igrejas de uma determinada época ou região. O termo "música sacra" exige a consideração de questões ligadas à sacralidade e, portanto, de natureza teológica ou filosófico-religiosa. A pesquisa da música sacra não pode assim ser comparada com a pesquisa de gêneros musicais profanos e ser efetuada através do emprêgo dos mesmos métodos. Tal procedimento seria necessariamente inadequado e levaria a resultados insuficientes, pois o objeto de estudo não estaria sendo considerado segundo os seus valores próprios, a intenção do seu autor e os seus pretendidos fins. Na sua posição por assim dizer intermediária entre as disciplinas musicológicas e aquelas de natureza teológica ou científico-religiosa, a pesquisa da música sacra poderia ser até mesmo vista como matéria à parte, com problemas, conceitos e métodos próprios. Ela somente poderia ser considerada integralmente como parte da musicologia caso esta fosse compreendida a partir de um conceito globalizante de música, herdado da Antiguidade e da Idade Média, parte da teologia e distante daquilo que hoje entendemos pelo termo. Teríamos então por assim dizer uma Musicologia Sacra, integral, e todos os fenômenos musicais profanos, eruditos ou populares, passariam a ser vistos como resultados de um processo de secularização e desintegração de uma visão globalizante do mundo e do homem acentuado nos últimos séculos.Este não é o caso, porém, da musicologia no sentido que é geralmente entendida e somente seria almejável para determinados estudiosos. Além do mais, nem toda a musicologia holística poderia ser considerada como católica.

Um pesquisador não-religioso, pouco interessado em assuntos teológicos ou mesmo um teólogo de orientação reformadora poderia argumentar dizendo que o termo "música sacra" pode ou deve ser empregado no sentido genérico para designar toda e qualquer música escrita ou executada na igreja ou em atos de culto religioso. A sua pesquisa poderia ser comparada à pesquisa de outras artes colocadas à serviço da religião, tais como a pintura ou a escultura. A argumentação de outros, porém, é de que a música, sobretudo devido a seu vínculo íntimo com a palavra, tem uma posição única, incomparável, passando a ser parte integrante do mistério litúrgico. Seria justamente essa ligação com o mistério sacramental que justificaria a sua denominação de sacra. Essa música realmente sagrada, parte do ato litúrgico, deveria ser distinguida da música para atos paralitúrgicos ou devocionais em geral, a ser denominada simplesmente de religiosa ou espiritual. Nem toda a música portanto que tenha sido escrito para a igreja ou executada na igreja ou em atos de culto deveria assim ser chamada de sacra.

Não é o caso, neste contexto, de considerar as diferentes posições músico-teológicas a respeito da compreensão da música sacra e seus fundamentos teológicos e suas razões pastorais. Nem muito menos tratar das discussões e tendências mais recentes, posteriores ao Concílio Vaticano II. O objetivo aqui é apenas lembrar que para a historiografia da música em geral e para os estudos brasileiros em particular os problemas que aqui se levantam são de especial relevâ ncia. Para a historiografia em geral, porque o critério de sacralidade que entende a música como parte integrante do mistério tem implicações na concepção do tempo. Não se pode esquecer que a incarnação do eterno no temporal, a comunhão do temporal com o eterno e a superação da temporalidade na assunção eterna representam por assim dizer pressupostos dos mistérios sacramentais do catolicismo. Isso sem falar das implicações cíclicas ou espirais-evolutivas do tempo histórico determinadas pelo ano litúrgico e pelo caminho da Igreja através da história, o que se expressa por exemplo na tradição dos folguedos populares. A música considerada realmente sagrada, - ou seja, aquela do mistério litúrgico, não pode ser considerada apenas através do seu relacionamento com os desenvolvimentos temporais profanos. O pesquisador deve sempre partir da hipótese de que os compositores sacros procuraram, consciente-ou inconscientemente um vínculo, uma re-ligação ("religio") com o a-temporal ou considerado como tal, sobretudo através do emprêgo do canto gregoriano. Aqui reside, portanto, uma das razões fundamentais do vínculo com a tradição e uma certa tendência conservadora da composição sacro-musical na história da música.

Há porém outros aspectos do problema sacro-musical a serem considerados na historiografia musical. A música de culto também foi considerada através dos séculos como meio de glorificação da majestade divina e de elevação espiritual dos fiéis. Como a serviço da glorificação o homem coloca tudo aquilo que considera de mais elevado, de melhor, também os compositores procuraram muitas vezes colocar a serviço do culto práticas de execução instrumentais e corais, gêneros e estilos que consideravam como sendo as mais altas expressões da música até então alcançadas. Com isso explica-se em parte o extraordinário florescimento da música coro-orquestral e o emprêgo de formas provenientes da ópera e da vida musical profana na música sacra dos séculos XVIII e XIX. A procura da elevação espiritual dos fiéis, um dos objetivos da música sacra, levou por sua vez muitos compositores ao emprêgo de recursos expressivos que atingiram por vezes limites questionáveis do sentimentalismo e da trivialidade.

Muitas dessas obras, vinculadas historica- e emocionalmente a determinadas festas, a irmandades, a igrejas ou a comunidades tradicionalizaram-se, passaram a constituir parte integrante de um universo por assim dizer a-temporal da vida do homem, sacralizando-se. A reforma da música sacra em fins do século XIX e início do século XX, partindo de ideais desenvolvidos na Europa Central e tornados universais pela legislação pontifícia representou um corte profundo não apenas na cultura sacro-musical do Brasil. Não se pode esquecer que grande parte da produção de compositores brasileiros do passado pertencia à esfera do culto católico. Raras são as peças profanas conhecidas do período colonial, e mesmo os compositores do século XIX dedicaram em geral as suas obras criadoras mais ambiciosas para a Igreja. Apenas gradativamente, com a construção de teatros, com a criação de associações musicais de câ mara e de grupos corais, com a fundação de orquestras e com o desenvolvimento do ensino musical passou a haver condições mais propícias para a produção musical secular.

A gravidade da situação reside não nessa situação e na sua transformação, mas sim nas consequências que o movimento reformador da música sacra trouxe para a consideração do passado musical do Brasil. As causas, as razões e a justificativa desse movimento não podem ser aqui discutidas. O fato é que sobretudo com a promulgação do Motu proprio do Papa Pio X toda a prática musical nas igrejas do Brasil passou a ser vista como inadequada, decadente, de menor valor artístico e espiritual, necessária de ser combatida por todos os modos. Com isso praticamente todo o passado musical do país, todo o seu patrimônio musical foi de fato desvalorizado. Esse movimento reformador, que visava uma restauração da música sacra segundo padrões idealizados, constituiu uma verdade revolução cultural até hoje insuficientemente considerada nos estudos da cultura brasileira.

A restauração da música sacra no Brasil ocorreu segundo critérios baseados em uma situação considerada ideal que o país nunca vivenciara. Para o Brasil, não se tratou assim tanto de uma restauração, mas sim mais de uma inovação. Uma inovação vinda de fora e que exigia a ação de agentes e multiplicadores vindos do Exterior. A história da música sacra do século XX é portanto fundamentalmente a história da recepção de correntes de idéias e de estilos europeus e da ação de religiosos e de músicos estrangeiros. Os compositores brasileiros de música religiosa que continuaram presos à antiga tradição coro-orquestral cairam na sua posição social e puderam apenas continuar com as suas atividades em poucas comunidades mais tradicionalistas ou em irmandades conservadoras, em geral de nível social mais modesto. Outros procuraram adaptar-se às novas normas e aos novos paradigmas propugnados pelo clero reformador. Esses modelos, porém, dificilmente se harmonizavam com as tendências estéticas da música contemporâ nea do início do século. Como nunca ocorrera antes, a esfera religiosa separou-se da esfera profana.

Nessas circunstâ ncias, torna-se compreensível que os compositores de maior relevâ ncia do Brasil do século XX hajam criado muito menor quantidade de obras para a igreja do que os autores do passado. Também é compreensível que tais composições não representem, em geral, as suas obras mais significativas.Se seguem os preceitos eclesiásticos, distinguiam-se em estilo de outras obras, ocupando uma posição especial no desenvolvimento estilístico dos respectivos autores. Se não, passavam a ser consideradas pelos religiosos como exemplos de música de inspiração religiosa, mas não sacras no sentido próprio do termo, aptas à liturgia. é compreensível, portanto, que os compositores tenham tido menos interesse em tratar textos litúrgicos. As suas obras da esfera sacra resumem-se em geral a peças menores, a peças solísticas ou a curtos motetos e hinos.

Os compositores brasileiros da primeira metade do século XX, considerados como criadores de obras sacras no sentido próprio do termo segundo os preceitos do Motu proprio de Pio X caíram hoje em total esquecimento. Com exceção de alguns poucos, por exemplo do mestre-capela da catedral de São Paulo, Furio Franceschini, foram na sua maioria religiosos, em grande parte missionários estrangeiros de língua alemã, tais como João Baptista Lehmann. Sobretudo os franciscanos se sobressairam na promoção da reforma sacro-musical, entre eles Pedro Sinzig, Basílio RÖwer, Romano Koepe, Feliciano Trigueiro, Januário Bauer e Tomás Samai.

O movimento de restauração litúrgico-musical foi talvez a maior tentativa dirigida de transformação cultural do país a partir de seus fundamentos. Foi talvez a intromissão estrangeira mais bem organizada na cultura do país, um enorme esforço de europeização realizado sob o título da universalidade da música sacra. No seu todo, um conjunto complexo de mal-entendidos tanto da parte dos agentes como dos recipientes. Era, na realidade, um resultado do historicismo europeu transplantado para o Brasil, onde necessariamente deveria permanecer ainda mais espúrio do que nos países de origem. Em todo o caso, um problema de múltiplas faces a ser investigado pela historiografia e que impede que a música sacra da primeira metade do século XX no Brasil possa ser tratada sem maiores considerações especiais nos compêndios de história da música do país.

Nessas condições, as composições dedicadas a gêneros e formas do culto católico na obra dos grandes compositores brasileiros do século XX oferecem sérios problemas a serem considerados. Este também é o caso da obra sacra do mais renomado compositor brasileiro: Heitor Villa-Lobos. Esta parte da sua obra tem sido pouco estudada e os poucas reflexões a respeito são muitas vezes diletantes e até mesmo demonstrativas de falta de informações e conhecimentos do desenvolvimento sacro-musical em geral . Este é o caso de um artigo a respeito da música religiosa de Villa-Lobos do argentino Gastón Talamón, de 1947, publicado posteriormente na série "Presença de Villa-Lobos".2 Mesmo assim, uma das obras mais largamente difundidas a respeito do compositor, o livro de Vasco Mariz "Heitor Villa-Lobos: Compositor Brasileiro", abre com um fac-símile de uma "Ave Maria" do compositor.3

De fato, as composições de cunho religioso não ocupam quantitativamente uma parcela preponderante na obra de Heitor Villa-Lobos. Numerosos outros compositores contemporâ neos dedicaram-se com muito maior afinco à produção sacro-musical. Heitor Villa-Lobos também não foi agente particularmente ativo e propulsor do movimento religioso-musical do século XX no Brasil, nem de longe comparável, por exemplo, com o mestre-capela de São Paulo, Furio Franceschini, com Fr. Pedro Sinzig e com os vários outros representantes do Canto Gregoriano, do Cecilianismo e da restauração litúrgico-musical no Brasil. A principal questão que sempre se levantou não foi porém tanto a da quantidade de obras que justificariam um papel exponencial de Heitor Villa-Lobos no gênero. O que se colocou em questão por várias vezes foi se as obras de H. Villa-Lobos poderiam realmente ser consideradas como sacras ou litúrgicas no sentido teológico-musical do termo ou se seriam antes obras de concerto baseadas em formas tradicionais do repertório sacro-musical.

O Pe. José Geraldo de Souza, na sua "História da Composição Sacro-Musical no Brasil", assim considerou Villa-Lobos como compositor de música sacra, em 1957: "Heitor Villa-Lobos (Rio, 1887), nosso máximo valor no momento, tentou o gênero sacro: Missa de S. Sebastião (a capela, 1927), vários Motetes (côro, órgão e orquestra), Marchas religiosas (orquestra). Escreveu uma outra Missa "Vidapura", a que chamou de oratório, para côro misto e órgão. Estamos dentro de uma grande arte sacra, mas já levemente extra-litúrgica. O ’pathos’, com seu recolhimento meditativo, dor, aleluias festivas, hosanas de apoteose, tudo revestido pela dinâ mica e original criação que conhecemos. A Missa de São Sebastião, ao invés, é tôda vazada numa mimosa feitura de simplicidade e liturgicidade, ambiência modal; na interpretação do texto sagrado, não lhe faltam, porém, moderados arroubos de êxtase, agitação rítmica, originalidade de interpretação. Noto por mim, sempre - descartege-me a hipótese de vilalobiano neste setor - curiosa e bela polirritmia (transposição do ritmo-livre gregoriano?) no Sanctus e Hosanna."4

Essas expressões deixam transparecer um certo tom reticente que parece ter caracterizado em geral a visão que se tinha de Villa-Lobos em círculos sacro-musicais do Brasil. O autor diz que Villa-Lobos "tentou o gênero sacro" e considera as suas obras "levemente extra-litúrgicas". A Missa de São Sebastião porém, reconhece ter características de "liturgicidade", o que equivale dizer que se coadnuva com os conceitos que então dominavam a respeito da música que deveria ser considerada sacra e que se baseavam nos preceitos do Motu proprio.

Este é um fato importante e até hoje pouco considerado nos estudos villa-lobianos. O compositor estava bem informado a respeito das normas restaurativas prescritas pela legislação eclesiástica e das características estilísticas de compositores religiosos vinculados à tradição cecilianista de Ratisbona e outros centros da reforma sacro-musical da Europa.

Houve anos na vida de Heitor Villa-Lobos nos quais ele se sentiu mais inclinado à composição de obras religiosas. As razões desse fato, circunstanciais, psicológicas ou outras, necessitariam vir a ser estudadas pelos biógrafos do compositor.

Do início de sua carreira conhece-se um considerável número de obras menores com assuntos religiosos, sobretudo composições sobre textos de preces (Ave Maria, Pater Noster) e cantos eucarísticos. Sob esse aspecto H. Villa-Lobos não se diferencia dos vários outros compositores da época que se dedicaram preferencialmente a tais pequenas formas religiosas. Deles depreende-se o tipo de cultura religiosa na qual o compositor estava inserido. Composições solísticas com textos religiosos e de expressividade intimista faziam parte até mesmo do repertório doméstico de cantoras e diletantes. Já não eram em geral solos de Ave-Maria como grandes árias operísticas da época de 70 ou 80, mas sim melodias caracterizadas por sentimentalidade e expressão de doce amor filial. Hoje poder-se-ia considerar grande parte desse repertório como sendo trivial, talvez até mesmo esteticamente questionável, ou seja, "Kitsch" Esse sentimentalismo de cunho mariano parece ter impregnado profundamente a religiosidade de Heitor Villa-Lobos. Ele foi aqui um filho de sua época, impregnada pela devoção do coração de Jesus e de Maria, pelos cantos de louvor sacramental de O Salutaris e do Tantum ergo. A época de sua juventude foi porém também uma época de transição da prática musical nas igrejas, caracterizada por esforços de superação daquilo que se supunha como espúrio, da despedida para muitos dolorosa do antigo repertório coro-orquestral, ainda executado por ocasião de grandes festas solenes e pela implantação da nova música sacra a capela ou com acompanhamento discreto de órgão.

Essa fase, caracterizada pela abolição gradativa das orquestras, pela sua substituição por quartetos de cordas em casos de ausência de órgãos ou harmônios, reflete-se na obra de Heitor Villa-Lobos. Ele compôs tanto segundo a antiga prática, como a Ave Maria para canto, violoncelo e orquestra de 1909, assim como de acordo com as novas tendências, como Pater Noster para coro misto à capela, de 1910. Ainda nos anos de 1913, 1914 e 1915 escrevia ele peças religiosas a serem acompanhadas por quarteto de cordas ou mesmo orquestra. Que o compositor ainda estava no íntimo emocionalmente ligado à antiga tradição coro-orquestral o prova a sua missa Vidapura de 1919, escrita para orquestra, solos e coro mixto. Posteriormente, quase que como uma desculpa perante os religiosos propagadores da reforma, seria essa obra considerada como oratório. No fim da vida, com o grande Magnificat alleluia, para coro e órgão ou orquestra, solo e coro misto, de 1958, retornaria Heitor Villa-Lobos à música sacra com acompanhamento orquestral da sua infâ ncia. Todo o período intermediário é caracterizado por uma maior ou menor submissão aos preceitos sacro-musicais das forças restauradoras da igreja e à legislação litúrgico-musical. Nem talvez poderia ser outra a posição do compositor, considerando-se que praticamente não teria havido possibilidade prática de execução de uma obra com acompanhamento orquestral em atos litúrgicos nessa longa época de domínio de cecilianistas e de propagadores da pureza na música das igrejas. Significativamente, as obras sacro-musicais de Heitor Villa-Lobos passaram a ser quase que exclusivamente para coro a duas, três ou quatro vozes a capela.

Essa disciplina a que se impôs o compositor não pode porém ser apenas explicada pelas exigências das circunstâ ncias. Tudo indica que o compositor não apenas conheceu como também aceitou os argumentos e os ideais dos representantes cecilianistas. Esses ideais tinha ele já conhecido provavelmente com religiosos com poucos conhecimentos musicais que o procuravam na juventude para que colocasse em pauta melodias inspiradas nos textos litúrgicos5 ou certamente com os monges do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, um dos grandes centros do cultivo do gregoriano e do ideal restaurador da música sacra no Brasil. Também escrevou para os corais infantís da Escola de Santa Cecília dirigida pelo Cônego Alpheu, um entusiasta da reforma sacro-musical no Rio de Janeiro

Obras sacro-musicais da juventude

O Salutaris, para coro e piano ou harmonio, 1905
Ave Maria, para canto, violoncelo e orquestra, 1909
Memorare, para coro a duas vozes e órgão, 1909
Padre Nosso, para coro misto à capela, 1910
Tantum ergo, para coro misto a quatro vozes, 1910
Ave Maria, para canto e órgão, 1912
Ave Maria, para canto e cordas, 1913
Ave Maria n° 6 para canto e piano, 1914
Ave Maria, para coro misto a quatro vozes, 1914
Ave Maria n° 10 para canto e quarteto decordas, 1914
Padre nosso (Prece), para coro e quarteto de cordas, ou canto e órgão, 1914
Tantum ergo, para coro e orquestra, 1915
Tantum ergo para coro misto a quatro vozes à capela, 1915
Ave Maria, para coro a duas vozes, 1916
O Salutaris, para coro misto a quatro vozes, 1916
O Salutaris hostia (motete) para coro misto a cinco vozes à ccapela, 1917
Ave Maria, para canto e órgão, 1917
Ave Maria n° 19, para canto e piano ou harmônio, ou coro misto a quatro vozes à capela, 1917
Ave Maria (Reza), para coro misto a quatro vozes, 1917
Ave Maria, para coro misto, 1917;
Ave Maria, para coro misto a quatro vozes, 1918
Vidapura, para orquestra, solos e coro misto, 1919

Nos anos 30 experimentou Heitor Villa-Lobos uma nova fase de dedicação à música sacra, agora claramente influenciada pelos ideais restauradores sacro-musicais e que se caracterizavam pela propagação do canto gregoriano como modêlo por excelência da música litúrgica e pela valorização da polifonia vocal na tradição palestriniana. Talvez tenha ficado impressionado com o trabalho de Vincent d’Indy e o seu círculo de músicos católicos da Schola Cantorum que conhecera em Paris. Isso o prova o interesse quase que arcaizante de Villa-Lobos por motetes e sobretudo a sua nova experiência na composição do Ordinarium missae: a Missa São Sebastião. Nesta missa, dedicada ao Frei Pedro Sinzig, Heitor Villa-Lobos vai de encontro aos ideais restauradores e cria uma obra que passou a ser aceita e louvada por religiosos e pesquisadores ligados à Igreja: "Obra de madurez, esta ultima se impone por su interesante escritura contrapuntistica y por la nobleza de la inspiración, que no es agena a las modalidades amerindias, sin uso directo de motivos del folklore."6 Não se pode esquecer, também a importâ ncia dada na época ao repertório de cantos corais com textos religiosos no Orfeão de Professores do Distrito Federal, um coral que executou em primeiras audições a Missa Papae Marcelli de Palestrina, a Missa Solene de Beethoven e a Missa em Si menor de Bach.7 Nessa época, o conservador crítico Oscar Guanabarino louvava Villa-Lobos por ter-se "aconchegado aos grandes mestres clássicos, repudiados por ele, antigamente".8

Ave verum, para coro misto a quatro vozes, 1930
Ave Maria (motete) para coro misto, 1933
Missa São Sebastião, para coro a três vozes à capela, 1937
Motete, para coro misto a três vozes à capela, 1937
Ave Maria, para coro misto a cinco vozes, 1938

A fase seguinte de dedicação ao gênero sacro-musical na obra de Heitor Villa-Lobos parece ter sido determinada sobretudo por motivos pessoais, existenciais, uma vez que caiu na época crítica de sua saúde. O fato de ter escrito uma Ave Maria a 6 vozes a capela antes da perigosa intervenção cirúrgica a que se submeteu em Nova Iorque foi vista por muitos como prova dos sentimentos religiosos do compositor. Poderia ter sido a sua última obra, como o foi do compositor mexicano Manuel Ponce.9

Ave Maria, para coro misto a seis vozes, 1948
Panis Angelicus, para coro misto a quatro vozes à capela, 1950
Pater noster, para coro misto a quatro vozes, 1950
Cor dulce, cor amabile, para coro a quatro vozes à capela, 1952
Hino a Santo Agostinho, para coro misto, 1952
Música sacra, para coros a duas, três, quatro e mais vozes à capela, 1952
O cor Jesu, para coro misto a quatro vozes à capela, 1952
O cor jesu, para coro misto a quatro vozes à capela, 1952
Praesepe, para solo e coro misto a cinco vozes à capela, 1952
Sub tuum, para coro misto a quatro vozes à capela, 1952.

As obras de 1958, por fim, representam sintomaticamente um fecho da obra villa-lobiana na sua dimensão espiritual: a Bendita sabedoria, 6 corais para coro misto à capela, sugerida por Carleton Sprague Smith e dedicada à Universidade de Nova York10 e o já citado Magnificat alleluia, para coro e órgão ou orquestra, solo e coro misto, escrita a pedido da Associação Italiana de Santa Cecília e oferecida ao Papa Pio XII por ocasião do ano dedicado a Nossa Senhora de Lourdes.

Apesar de todas essas demonstrações de profundo vínculo com a Igreja, por várias vezes foi colocada em dúvida a religiosidade, ou melhor a ortodoxia religiosa de Heitor Villa-Lobos. Desconfiança gerava sobretudo o amor pela natureza manifestado na obra villa-lobiana, o que era considerado por alguns católicos como sinal de tendência panteísta.11 Alguns autores fazem questão de citar o próprio compositor, que dizia ser "católico por princípio", uma expressão que pode ser entendida sob várias perspectivas. Objeto de publicação foram até mesmo pormenores de sua extrema-unção ministrada por Frei Antonio Garciâ ndia Gamboa, ex-aluno do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico. Parece ter-se tornado quase que um lugar comum dizer que quem escrevara o Sumé Pater Patrium (10a. sinfonia, escrita para o IV Centenário de São Paulo) ou a Missa São Sebastião já estaria absolvido dos pecados.12

 

1Simpósio internacional "Música Sacra e Cultura Brasileira", 1981

2 Gastón Talamón, "La musica sacra", Presença de Villa-Lobos 10(1977), 75-79

3"Ave Maria da Meia noite para a Jojota, de 12 de novembro de 1938. Vasco Mariz, Heitor Villa-Lobos: Compositor Brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, Fundação Nacional Pró-Memória, Museu Villa-Lobos, 6a. ed., 1977

4 José Geraldo de Souza, "História da Composição Sacro-Musiccal no Brasil", Música Sacra, Petrópolis 17/5, Novembro-Dezembro de 1957, 166-171.

5 "Desde la iniciación de su carrera en tiempos de bohemia, le tocó en suerte escribir para el templo, pués un sacerdote amigo, por carencia de conocimientos e dejadez, le entregaba con frecuencia motivos musicales proprios para que los escribiera a várias voces, trabajo retribuido co algumos miles de reis que caian como llovidos del cielo en las arcas exhaustas del joven compositor". Gaston Talamon, "La musica sacra", op.cit. 78

6 Gaston Talamon, "La musica sacra", op.cit. 79

7Ana Lamego de Moraes Sarmento, "Canto Orfeônico" (1942), Presença de Villa-Lobos 10(1977), 29-35, 32

8 Oscar Guanabarino, "Pelo mundo das artes" (1933), Presença de Villa-Lobos 10(1977), 165-166

9 Mindinha, op.cit. 157

10Análise breve em Vasco Mariz, op.cit. 152

11Gaston Talamón, "La musica sacra", op.cit. 78

12 Mindinha, "Villa-Lobos, sua Extrema-Unção", Presença de Villa-Lobos 10(1977), 157-159

13"Andrade Muricy Escreve", Música Sacra, Petrópolis 17/2, Março-Abril de 1957, 42-43.

14Vasco Mariz, Heitor Villa-Lobos: Compositor Brasileiro, op.cit., 151

15A questão da universalidade na obra de H. Villa-Lobos não é nova. Veja por ex. o artigo de 1941 de Alfredo Lage, "Universalidade de Villa-Lobos", Presença de Villa-Lobos 10(1977), 9-19

 

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