Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006
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N° 65 (2000: 3)
Congresso Internacional Brasil-Europa 500 Anos MÚSICA E VISÕES Sob o patrocínio da Embaixada da República Federativa do Brasil Akademie Brasil-Europa Pres. Dr. A. A. Bispo- Dir. Dr. H. Hülskath em cooperação com/in Zusammenarbeit mit:
Internationaler Kongreß Brasil-Europa 500 Jahre
MUSIK UND VISIONENColonia, 3 a 7 de setembro de 1999
Köln, 3. bis 7. September 1999
Unter der Schirmherrschaft der Botschaft der Föderativen Republik
Brasilien
ISMPS/IBEM
Deutsche Welle
Musikwissenschaftliches Institut der Universität zu Köln
Institut für hymnologische und musikethnologische Studien
Dr. José Maria Pedrosa Cardoso
Universidade de Coimbra
Die Musikbeziehungen zwischen Portugal und Brasilien vom Beginn
der Kolonisation an werden anhand der liturgischen Musik der Karwoche
(Paixão) dargestellt. Passions-Musik aus Brasilien wurde bereits
von mehreren brasilianischen Forschern untersucht. Die "Paixões"
von Francisco Luis, Domkapellmeister von Lissabon (1693) dürften
in Brasilien 1743 vom ersten Bischof von Mariana eingeführt worden
sein. Diese in Portugal weit verbreiteten Kompositionen dürften
jedoch in Brasilien weit früher bekannt gewesen sein. Eine rezente
Quelle ist die Sammlung der sogenannten "Gruppe von Mogi das Cruzes".
Darin findet sich eine Musik für die Karwoche, die mit der anderer
Manuskripte aus Minas Gerais und São Paulo vergleichbar ist. Vor
kurzem konnte der Verfasser in der Benediktiner-Abtei von Rio
de Janeiro eine Passion des Komponisten Manuel da Silva Rosa (1793)
studieren. Als Ergebnisse der Rezeption portugiesischer Musik
beweisen diese Kompositionen exemplarisch die Musikbeziehungen
zwischen Portugal und Brasilien. Die Untersuchung des monophonischen
Modells portugiesischer Passionsmusik ist von entscheidender Bedeutung
für das Verständnis der mehrstimmigen Textos, Bradados, Turbas
oder Versos, zumal die Komponisten in ihrer Mehrheit weiterhin
auf der Cantus-firmus-Basis arbeiteten.
(partes)
O fenómeno da enculturação musical do Brasil está ainda longe de se explicar satisfatoriamente. Se é lícito partir do pressuposto de que não existe uma música brasileira pura, tal como não existe um nacionalismo musical autónomo na música ocidental, que papel têm as culturas europeias e africanas na afirmação de uma música no Brasil? No jogo das influências mútuas, e para além da fixação de músicos portugueses na América e da vinda para Portugal de homens marcantes como um António José da Silva ou um Domingos de Caldas Barbosa, que é que justifica e quem cria e mantém escolas de música no Brasil? Que instrumentos e que técnica musical se ensinou no Brasil colonial? Até que ponto a música promovida no Brasil deixou de ser europeia para ser naturalmente americana? Para o conhecimento da música colonial brasileira é tão importante estudar o passado musical português como seguir a trajectória brasileira de compositores tão significativos como o lisboeta André da Silva Gomes e o filho de pai português José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, porventura "o maior músico mineiro do século XVIII".
Considerando expressamente os princípios da presença portuguesa em terras de Santa Cruz, são já conhecidos alguns documentos que testemunham a utilização de espécimes musicais portugueses ao serviço da evangelização do Brasil. Sabe-se que, através da técnica de contrafactura, o Pe. José de Anchieta utilizou música profana portuguesa como música "a lo divino", como é o caso do vilancete Venid a sospirar al verde prado que transformou em Venid a sospirar a Jesus mío Por outro lado, os Jesuítas, cuja acção missionária teve na música um importante instrumento de apoio, ao comunicarem as suas experiências aos seus confrades europeus, referem frequentemente a origem exterior dos seus conceitos de intervenção musical. Assim, o Pe. Leonardo do Vale, escrevendo da Baía em 12 de Maio de 1563 ao Pe. Gonçalo Vaz de Melo, fala de uma missa celebrada em São Paulo "com tão boa capela e tam bem fornecida de cantores, como se poderá encontrar em qualquer das principais ygrejas de Lisboa ". Por sua vez o Pe. Manuel da Nóbrega, escrevendo ao P. Simão Rodrigues na Baía em 9 de Agosto de 1549, ao falar da procissão de Corpus Cristi diz que "ouve danças e invenções à maneira de Portugal".
Para comprovar documentalmente a relação musical Portugal/Brasil, desde os primeiros tempos de colonização, sirva o exemplo da música sacra, e concretamente da música litúrgica da Paixão, que tentaremos enquadrar na sua ambiência histórico-religiosa.
(...)
Finalmente, e já no passado mês de Agosto, foi possível encontrar no Mosteiro de S. Bento de Rio de Janeiro uma Paixão/Texto a 3 vozes do compositor carioca Manuel da Silva Rosa (1793).
Qualquer destas espécies de música da Paixão não interessa tanto como documento isolado, mais ou menos inédito, que faz a história da música do Brasil, quanto como constatação de alguma coisa que apenas se suspeitava: sendo cópias de composições portuguesas ou transcrevendo modelos musicais genuinamente portugueses, como adiante se dirá, esses manuscritos comprovam o nexo cultural entre Portugal e Brasil e constituem verdadeira ponte cultural entre os dois continentes.
Focando neste momento apenas a documentação referida, e sem prejuízo de outras pesquisas no que respeita à grande música sacra do Brasil colonial, importa salientar que toda ela é música funcionalmente litúrgica para a semana santa. Ora a Semana Maior constitui o âmago do tempo litúrgico, que o mesmo é dizer do ciclo temporal dos cristãos. É um tempo especialmente privilegiado para todas as práticas e devoções: no Brasil, como em todo o mundo cristão. Não admira que também em terras de Santa Cruz se produzisse muita e excelente música da Paixão: o ambiente assim o exigia. Sabemos, pelos relatos dos primeiros missionários, como as comunidades nativas viviam o drama da Paixão de Cristo. Em rápida pesquisa pelos Monumenta Brasiliae de Serafim Leite, foi possível detectar, pelo menos sete passos com referência à recepção e vivência das gentes do Brasil ao anúncio da Paixão de Cristo. A título de exemplo:
Carta do P. Antonio Gonçalves aos Padres e Irmãos de Portugal,
Porto Seguro 15 de Fevereiro de 1566:
"12. O oficio da Semana Santa se fez nesta nossa Casa com grande
devação dos que a ele se acharão; forão cantados, os quaes o Padre
Brás Lourenço fez muito bem, tomando pera isso os moços da escola,
que ensayou alguns dias antes, e outras pessoas devotas, que se
lhe offerecerão pera isso. E esteve a Igreja muito bem armada,
principalmente o sepulcro, porque se lhe fez huma casa de quantaria
toda com dous arcos que lhe davão muito lustro. O Santissimo Sacramento
estava em huma charola, que pera isso estava muito ricamente ornada
com todo o ouro que na terra se pôde achar
Pregou-se a Paixão
com muita devação e sentimento e lágrimas dos ouvintes, e certifico-lhes
que nunqua vi tantas lágrimas em Paixão como vi nesta, porque
des ho principio até ao cabo foi huma continua grita, e não avia
quem pudesse ouvir o que o Padre dizia; e isto assim em homens
como em molheres, e sairão algumas cinquo ou seis pessoas quasi
mortas, as quaes por muito espaço não tornarão em sy e outras
com medo do mesmo não ousarão de esperar toda a preguação, por
mais que o Padre abreviava com ver estas cousas. E ao outro dia,
bem se domonstrava que não era a devação fingida polos sinais
das bofetadas que nos rostos se vião; e ouve pessoas que dizião
desejarem, de se irem meter em parte omde mais não visse gente
e fazerem toda a sua vida penitencia dos seus pecados. A sexta-feria
seguinte se fez o officio do desenterramento do Senhor com o mesmo
sentimento, e devação, levando dous Padres vestidos com suas alvas
e descalços ao Santissimo Sacramento em huma tumba toda cuberta
de preto que pera isso era feita, indo diante as Tres Marias,
cantando Heu, Heu, Salvator noster, cubertas com seus mantos e
coroas em as cabeças, o que tudo causava grande devação e admiração
a esta gente por não averem visto outra tal nesta terra depois
de ser povoada, dizendo que no Reino se poderia fazer tam bem,
e milhor não."
Estes relatos de uma evangelização fresca por terras do Brasil explicam o princípio de uma vivência religiosa que, no decorrer das gerações, justificará o aparecimento de excelente música sacra durante as celebrações da Semana Santa. E são precisamente textos semelhantes, agora do lado de Portugal, que justificam a produção de uma música da Paixão tão abundante como rica.
Valeria a pena invocar o teor dos cerimoniais e manuais litúrgicos antigos a justificarem a importância da liturgia da Paixão. Sirva apenas de exemplo a citação do Leal Conselheiro do Rei D. Duarte e verifique-se a justificação de tal devoção num tratadista litúrgico posterior:
D. Duarte, Leal Conselheiro, c. 1438 Fr. Francisco de Jesus Maria
Sarmento, Directorio Sacro
1794
"Cap. 97 - Do tempo que se teeem nos oficios da capeella.
Item
aa ssesta feira dendoenças, afora a preegaçom que se não pode
osmar, em pryma, terça, sexta, noa rezadas e duas profecias com
dous tractos, e paixom e oraçom sollemnes, e adoraçom da cruz,
mudamento do sacramento do altar pequeno ao altar pryncipal, e
o oficio do altar e mudamento do sagramento do altar ao muymento,
e vesperas rezadas: tres horas e mea."
"Já dissemos que depois do Officio de Quinta feira Santa, até à noite do Sabbado para o Domingo de Pascoa, todos os fieis da primitiva [Igreja], por hum movimento de piedade, se prescrevião hum rigoroso jejum: e que a maior parte delles passavão todos estes dias velando e orando nos sagrados templos.
"Por esta causa a Igreja Santa, desejando entreter a piedade dos seus filhos, fez muitos regulamentos, proprios, e accomodadso para os instruir, e edificar, e ao mesmo passo diferentes: attendendo aos lugares, e diversidade dos tempos. A pratica mais commum desde os primeiros seculos, logo que a Igreja recebeo a liberdade pelos Principes, e Imperadores feitos Christãos, foi a seguinte: lerem-se diversos lugares do antigo Testamento: rezarem-se muitos Psalmos: ler-se a Paixão do Senhor, segundo os quatro Evangelistas, repartida em doze lições: fazerem-se orações solemnes por todos os Estados da Igreja, e fora della: praticar-se a cerimonia da Adoração da Cruz, e celebrar-se o Santo Sacrificio, ou pelo menos, a chamada Missa dos Pre-santificados "
Refira-se ainda que a indicação normativa de D. Duarte será observada escrupulosamente na Capela Real através dos tempos, como consta em todo o pormenor no Cerimonial da Capela de D. João III, um ms português da época prestes a ser publicado.
É nesse sentido que se pode entender o que Matos Sequeira descreve remontando a finais do século XVI, texto este que, em paralelo com novo trecho de uma carta missionária, aproxima de novo a o clima devocional de Portugal e Brasil
PORTUGAL
Lisboa, 1584, S. Roque (Jesuítas)
BRASIL
São Vicente, 1560, Missão dos Jesuítas
"O cortejo dos disciplinantes, pelas sextas-feiras da quaresma, depois das Avés Marias, ao anoitecer, rezando em voz alta, à frente dos passos armados na rua e no largo era uma cena impressionante, com qualquer coisa de Macbethiano, de trágico.
O povo, em ondas penitentes, castigava-se com correias, paus, cintos de coiro e varas; a rua [de S. Roque] enchia-se de gentio disciplinante; e a crasta, a igreja, a portaria, o largo eram insuficientes para o conter. Suprima-se à cena a luz eléctrica, alumie-se a turba com candeias, e veja-se o efeito patético." "En las fiestas principales están presentes a los divinos officios y procesiones, disciplinándose hasta derramar sangre, para lo qual mucho antes aparejan disciplinas con mucha diligencia. Lo mesmo hacen en otros tiempos, quando por alguna necesidad se hazen procesiones. El officio de tinieblas hazemos en la iglesia sin canto, el qual concluimos tomando la disciplina con tres Miserere. También les predicamos la Pasión en su lengua, no sin gran devoción y muchas lágrimas de los oyentes "
Neste contexto místico-religioso da sociedade portuguesa, vale a pena referir que o canto litúrgico da Paixão mereceu uma atenção muito especial junto dos eclesiásticos portugueses a julgar pela impressão de três Passionários no século XVI - o de Diogo Fernandes Formoso em 1543, provavelmente o terceiro impresso musical português, logo a seguir aos tratados teóricos de Mateus de Aranda, o de Manuel Cardoso em 1575 e o de Fr. Estêvão de Cristo em 1595 - e um já no século XVII, o de Fr. Manuel Pousão em 1675.
Sem entrar em pormenores documentais dos impressos citados, todos estes passionários se limitam a transmitir em caracteres de imprensa uma tradição musical até agora considerada de origem portuguesa, embora o primeiro documento com o mesmo modelo monódico, o Alc. 167 da Biblioteca Nacional de Lisboa, remonte presumivelmente ao século XV: tanto Fernandes Formoso como Manuel Cardoso afirmam-se continuadores da tradição musical da Capela Real portuguesa até então salvaguardada por exemplares efémeros. Ora, em cotejo com os modelos melódicos do canto litúrgico da Paixão praticados nos restantes países católicos da época, o modelo tradicional português aparece claramente diferenciado: ao contrário da maior parte dos modelos conhecidos, que utilizam sistematicamente três cordas recitativas para os três cantores convencionais da Paixão, o modelo português adopta apenas duas notas-tenor: uma para o narrador (Evangelista) e para o papel do Cristo e a outra para o papel dos restantes personagens solistas ou colectivos (o Bradado ou Sinagoga).
O conhecimento deste modelo monofónico é obviamente fundamental para se compreenderem as composições polifónicas de Textos, Bradados, Turbas ou Versos da Paixão que enriqueceram o património musical de Portugal, sabendo que os polifonistas portugueses, na sua maioria, continuaram a compor música sacra na base do cantus firmus tradicional.
Foi inútil até ao momento a tentativa de localizar em terras brasileiras qualquer deste passionários impressos portugueses, e, contudo, não é crível que os missionários se fiassem exlusivamente da sua memória e não tivessem levado consigo qualquer passionário entre os restantes livros litúrgicos. De qualquer modo, e enquanto esperamos uma abertura mais liberalizada dos arquivos brasileiros, existe a certeza de que o modelo melódico da paixão portuguesa foi introduzido no Brasil. Seja o primeiro exemplo, a Paixão de Francisco Luís nas cópias existentes em Mariana e em São Paulo: a par da polifonia composta para o Texto, ou seja o Narrador ou Evangelista, os manuscritos transmitem, nos momentos próprios, a linha monofónica de todos os personagens da Paixão, inclusive o próprio Cristo, e obviamente, de acordo com as numerosas cópias dos arquivos portugueses, com o modelo melódico tradicional português.
O outro exemplo está patente no Grupo de Mogi das Cruzes: aqui, como se pode ver nas transparência, aparece em plena polifonia do canto das Turbas a linha monofónica da criada, a célebre ancilla, que é igual à mesma frase dos Passionários portugueses, neste caso a trasnparência de duas páginas de Fr. Manuel Pousão. Finalmente, o manuscrito encontrado no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, da autoria de Manuel da Silva Rosa, apresenta igualmente o Texto da Paixão a três vozes, mas à semelhança das cópias de Francisco Luís, igualmente com a monofonia tradicional portuguesa para as frases de todos os personagens da Paixão.
Fica para outra oportunidade a análise da escrita polifónica destes espécimes brasileiros da Paixão. Da minha parte, estou certo que não andarão longe da produção de tal música por terras portuguesas onde, por entre os 166 espécimes polifónicos hoje conhecidos, sobressaem os notáveis Versos da Paixão, ou Ditos de Cristo, a 3 vozes que, a partir de Santa Cruz de Coimbra (e com obras notáveis de D. Pedro de Cristo, Estêvão Lopes Morgado e Francisco Martins), constituem uma corrente estética alargada a todo o Portugal e, agora sabemo-lo. também no Brasil, justificando plenamente o que o especialista Kurt von Fischer, referindo-se ao MM 56 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, chama "Ein singulärer Typus portuguiesischer Passionen".
Eis aí o um bom reflexo da prática musical e, se quiserem, o início de um verdadeiro fluxo-refluxo da cultura musical luso-brasileira. Pelos vistos, não é so a modinha, eventualmente o Fado ou em geral o afecto melancólico que aproxima a música dos povos irmãos: a essência musical brasileira vem de muito antes e Portugal, à frente da Europa, está na sua origem.
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