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N° 22 (1993: 2)


 

Martin Braunwieser, Invocação da Índia Cunurí. Esboço manuscrito. (Acervo A.A.Bispo/ISMPS )
1993: 25 anos de fundação da Nova Difusão Musical
e do Centro de Pesquisas em Musicologia

Trabalhos etnomusicológicos e interdisciplinares do

II° Congresso Brasileiro de Musicologia

Rio de Janeiro
22 a 25 de abril de 1992

MARTIN BRAUNWIESER E A MÚSICA INDÍGENA DO BRASIL

 

Antonio Alexandre Bispo

(Excertos)

 

Martin Braunwieser, 1972. Ano dos trabalhos preparatórios conjuntos para o início do curso de Etnomusicologia na Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo sob a direção de A. A. Bispo
É obrigação de todos aqueles que se dedicam aos estudos da cultura, entre eles ao da musicologia, procurar aproximar-se cada vez mais da veracidade nos desenvolvimentos históricos e dos reais fundamentos de fenômenos observados empiricamente. É dever de consciência de todo aquele que se dedica aos estudos musicológicos prescrever-se à objetividade científica, mesmo sabendo do seu condicionamento subjetivo, da complexidade dos fatos a serem estudados e de que os resultados de seus esforços estarão continuamente sujeitos a serem aprofundados e eventualmente revistos. Este intento imprescindível à musicologia e que a distingue da musicografia de cunho estético, literário ou político-cultural, exige do pesquisador a disposição de abandonar, se necessário, pontos de vista e valorações que se revelem inexatos, errôneos ou artificialmente construídos e a de salientar fatos e personalidades até então pouco considerados. Sob este aspecto, o trabalho musicológico não pode aspirar nada mais alto do que representar uma contribuição, ainda que modesta e insuficiente, à justiça da História.

É uma questão de justiça póstuma que nos une hoje nesta sessão em memória de uma personalidade de músico, compositor, regente, musicólogo e organizador que exerceu profunda mas silenciosa influência na vida e nos conceitos musicais do Brasil, em particular de São Paulo, mas que sempre se esforçou em apagar o seu próprio nome, a fim de deixar brilhar mais alto a luminosidade dos ideais propugnados. A homenagem que procuramos hoje prestar a esse homem de extrema modéstia e apenas preocupado com a própria serenidade da consciência do dever cumprido, não seria por ele aceita em vida, se não fosse compreendida como a serviço dos valores ético-artísticos para os quais sempre lutou.

O ano em que Martin Braunwieser encerrou a sua vida, pouco após completar os seus 90 anos, foi ano dedicado mundialmente ao bi-centenário da morte de Wolfgang Amadeus Mozart. Mais do que superficial coincidência, representa o vínculo aquí sugerido a linha mestra que deve guiar os nossos pensamentos nesta breve evocação. Martin Braunwieser foi filho de Salzburg, a "Cidade Mozart" por excelência, onde nasceu no primeiro ano deste século. A sua infância, decorrida nos últimos anos da antiga Monarquia Austro-Húngara, foi marcada pela atmosfera de entusiasmo pelos ideais mozartianos e que deveriam ter a sua expressão máxima na inauguração da "Casa Mozart" como centro do então já tradicional "Mozarteum". A solenidade de abertura desse edifício, expressamente prevista para ser um "Templo do Espírito Mozartiano", foi turvada pela eclosão da Primeira Grande Guerra, em 1914, e que representaria o início do fim de todo um universo cultural da velha Europa.

Martin Braunwieser vivenciou a diversificada vida musical de sua cidade natal como menino-cantor e instrumentista. Além da grande tradição de música sacra com acompanhamento instrumental, no espírito do luminoso Classicismo, Martin Braunwieser tomou cedo contacto com o movimento de renovação sacro-musical, tão intenso em Salzburg, graças sobretudo ao empenho de seu príncipe-arcebispo, o Cardeal J. Katschthaler (1832-1914). A época de seus estudos no Mozarteum coincidiu com uma fase de extraordinário dinamismo nessa instituição, que procurava, agora sob a direção do jovem e empreendedor Bernhard Paumgartner (1887-1971), alcançar maior amplitude de perspectivas e mais profunda fundamentação musicológica de suas atividades. Martin Braunwieser foi um de seus mais destacados alunos, e de sua intensa atividade como violista, violinista e flautista em audições escolares e em concertos de associações estudantís e amadoras falam vários programas e numerosas críticas. O seu grande mentor foi o próprio Paumgartner, que tornou-se seu amigo fiel até o fim de sua vida. Entre os seus colegas de prática musical salientou-se Erich Schenk (1902-1974), mais tarde importante personalidade da Musicologia austríaca.

No Mozarteum, M. Braunwieser tomou contacto com o crescente interesse pela música do passado mais remoto e pela redescoberta de compositores esquecidos. Aquí é que se encontram as raízes do trabalho pioneiro em prol da música antiga e da descoberta de Bach que mais tarde desenvolveria no Brasil. Este interesse por camadas mais antigas da história da música européia unia-se, nos anos críticos do período posterior à Primeira Grande Guerra, à procura de uma renovação artística e espiritual que possibilitasse superar a crise sentida no romantismo tardio.

É significativo, portanto, que Martin Braunwieser haja dedicado a sua juventude decididamente à criação músical contemporânea. Sob a influência de Felix Petyrek (1892-1951), M. Braunwieser, cuja primeira obra fora um Sanctus, dirigiu a sua atenção a questões relacionadas com a dimensão espiritual da criação musical. A escolha de material de cunho orientalista fazia parte dessa procura de um aprofundamento místico na consideração do fenômeno sonoro e de uma renovação da linguagem musical a partir de reflexões concernentes à simbologia do seu conteúdo e de suas leis estruturais. O grande acontecimento na sua juventude foi, sem dúvida, a vivência do Primeiro Festival de Salzburg, inaugurado em 1920 com a peça Jedermann, Das Spiel vom Sterben des reichen Mannes, na qual H. v. Hofmannsthal procurava reviver o espírito dos mistérios medievais. A profunda impressão causada pelo movimento renovador do teatro alemão manifestar-se-ia na complexa obra sinfônica que Martin Braunwieser terminaria em Split, em 1923, e que seria denominada de"O Teatro do Mundo".

Sob a pressão da crise econômica daquele ano, o jovem M. Braunwieser fora obrigado, juntamente com outros colegas do Mozarteum, a procurar novos campos de ação nos países balcânicos e na Grécia. Aquí, atraído sobretudo pelo substrato da cultura oriental, passou ele a dedicar-se à pesquisa de tradições musicais turcas. A investigação da cultura popular unia-se à procura do originário do ponto de vista estrutural e simbólico. Ao lado desse interesse de cunho musicológico-comparativo e filosófico, M. Braunwieser dedicou-se à divulgação de obras de J.S.Bach e do Classicismo em Atenas, onde atuou como professor do Odeon, a partir de 1925, juntamente com Felix Petyrek e aquela que se tornaria a sua esposa, a pianista russa Tatiana Kipmann. O grande acontecimento no âmbito dessa missão difusora de valores clássicos centro-europeus na Grécia foi a sua participação na execução do Requiem de Mozart no Estádio de Olympia.

A fascinação do casal Braunwieser pelo Brasil foi despertada pela obra "Saudades do Brasil" de Darius Milhaud. Essa obra, executada na Alemanha pela primeira vez em Simpósio realizado por círculos antroposóficos de Dornach, foi incluída pelo casal Braunwieser nos seus programas de Atenas e seria a prova de simpatia pelo país que o casal procuraria dar no seu primeiro concerto realizado em Bragança Paulista, em 1927. Nessa cidade do interior do Estado de São Paulo, cuja vida musical estava sendo dinamizada por um parente que alí atuava como regente de orquestras de amadores, M. Braunwieser e sua esposa procuraram desde o início preparar os ouvintes à apreciação de obras do Classicismo e da música contemporânea da Europa Central. Ao mesmo tempo, condicionado pelos seus estudos e pesquisas relacionados com a música transmitida pela tradição dos países balcânicos e da Grécia, M. Braunwieser esforçou-se desde o início em estudar e valorizar a cultura musical do país de adoção.

Apesar do entusiasmo despertado pelas atividades idealistas do casal Braunwieser na região bragantina, os jovens imigrantes reconheceram que somente a cidade de São Paulo poderia oferecer, na época, condições profissionais e artísticas à altura de sua formação. Aquí, encontraram eles inicialmente maiores possibilidades para a sua ação artística em círculos austríacos, alemães e russos. Enquanto Tatiana Braunwieser apresentava em São Paulo, sobretudo em concertos da Sociedade Austríaca Donau, obras para piano e de câmara em primeira audição, executando pela primeira vez no Brasil importantes obras de Strawinsky, Hindemith e autores tchecos e húngaros, Martin Braunwieser, ao lado de sua atividade como compositor voltado à renovação da linguagem musical, assumia a regência de tradicionais coros da comunidade de língua alemã, sobretudo do Coro Schubert.

O seu objetivo foi aquí o de contribuir para uma "comunhão teuto-brasileira" através da arte. Esse ideal de congraçamento de povos, que procurava ao mesmo tempo a integração das colonias de língua alemã na comunidade brasileira e a transmissão de valores culturais centro-europeus aos brasileiros e brasileiros aos europeus, levou-o ao aprofundamento do estudo da cultura musical do país. Foi o Coro Schubert que participou, juntamente com outras forças musicais paulistanas, de um concerto já histórico de música sacra brasileira dedicado ao centenário do Pe.José Maurício e foi esse coro que, sob sua direção, possibilitou a realização de concertos que marcaram época de H. Villa-Lobos. A consideração da música folclórica brasileira por Martin Braunwieser desenvolveu-se à luz da tradição de coros amadores do mundo de língua alemã, sobretudo de trabalhadores, onde a canção popular, o "Volkslied" era visto como base de uma atividade musical a serviço de valores humanos e comunitários. O grande feito de Martin Braunwieser foi a realização, com os seus cantores alemães e austríacos, e apesar de todas as dificuldades da pronúncia do português, dos primeiros programas dedicados exclusivamente a obras vocais de compositores brasileiros em São Paulo, muitas delas escritas especialmente para o seu coro, o "Braunwieserchor". Foi ele que incentivou o tratamento coral das melodias coletadas por Mário de Andrade no seu "Ensaio sobre a Música Brasileira".

 Aproveitamento de motivos indígenas na Educação Musical

O "Bailado dos Índios" foi escrito
para a dramatização de título "Seis Lendas Amazônicas", de autoria da Divisão de Educação e Recreio do Departamento de Cultura de São Paulo, representada no Parque Infantil D. Pedro II, em 27 de abril de 1941. A cena passava-se no aldeamento dos Tárias, na floresta amazônica. Para o diálogo inicial entre um jovem guerreiro e o pagé, intercalado pelo coro dos índios, M. Braunwieser compôs a peça N° 1, O " Canto do Piága". Para o II° Quadro," Bailado das Amazonas Brasileiras", executado por 30 meninas, escreveu a peça "Praiá" sobre temas cedidos pela Discoteca Municipal e por ele coletados durante a Missão ao Nordeste do Brasil. O "Bailado das Vitórias Régia"s teve música de Dinorá de Carvalho ("Lá vai a barquinha carregada de...?"), para o bailado do coro das índios, M. Braunwieser escreveu uma peça instrumental de título "Invocação da Índia Cunurí". Para o III° Quadro, "Bailado dos Besouro"s, usou de composição de O. Lorenzo Fernandez ("Manhã na Praia"). Para o IV° Quadro, "Bailado das libélulas", foi utilizada a peça do mesmo nome de Barrozo Neto. O IX° Quadro teve o "Canto do Uirapurú" com o "Uirapurú" para solo de flauta de H. Villa-Lobos e a lenda do Curupira com "O Polichinelo", do mesmo compositor. A cena II incluiu o canto de uma índia ao som de "Cobra Grande", de Valdemar Henrique, a cena VII, " a belíssima visão das Uiaras", com música de "As Uiaras" de A. Nepomuceno, e a cena VIII, finalizado a peça, constou de um oferecimento ao "Homem branco" da "dança da paz", com "representantes das mais valentes tribos do Rio Amazonasa". A cena IX foi constituída pelo "Bailado do Praiá", com composição de Martim Braunwieser e coreografia baseada em documentos da expedição ao Nordeste do Brasil. Nesta peça, a mais significativa do programa, M. Braunwieser procurou imitar a linha melódica de um canto por ele gravado na região de Tacaratú, em Pernambuco, acompanhado por quintas repetidas no baixo. Este recurso, além da alusão ao uso de glissandos no canto por meio de escalas cromáticas descendentes, empresta à composição um cunho de estranho orientalismo. A instrumentação foi o principal meio utilizado pelo compositor para valorizar a obra e criar atmosfera. De particular efeito é o uso das trompas em alternância às madeiras na música para a cena n° 1, o "Canto do Piága".

(A.A.Bispo)

Não é de estranhar que Mário de Andrade tenha sempre se manifestado em termos do mais alto apreço a respeito das atividades de Martin Braunwieser. Mário de Andrade, admirador da cultura musical alemã, encontrou nos ideais e nas ações de Martin Braunwieser, as próprias convicções refletidas. O estudo dos comentários de Mário de Andrade e sobretudo as próprias atividades de Martin Braunwieser em fins dos anos 20 e início da década de 30, realizadas a partir de seus próprios pressupostos centro-europeus e, portanto, independentemente dos impulsos decorrentes da "Semana de Arte Moderna" de 1922 demonstram claramente como a história da música e do pensamento musical do Brasil desse período necessitariam ser reconsiderados dentro de uma perspectiva que abrangesse mais amplamente as conceituações contemporâneas e a situação política da Europa Central, em particular da Áustria e da Alemanha. Somente assim poder-se-ia compreender também a posição de Martin Braunwieser perante o folclore e o assim-chamado nacionalismo musical. Ele, que tanto lutou pela valorização da obra de compositores brasileiros que utilizavam de material folclórico nas suas composições, partia do pressuposto que a música, em particular a canção folclórica, representaria um patrimônio musical e espiritual que deveria vir a ser fundo de um novo humanismo musical. A sua posição guiava-se pela do Classicismo no seu relacionamento com a música tradicional e popular e não pela do nacionalismo. Essa sua atitude ligada a um universalismo humanista de cunho clássico, porém com raízes na cultura do país, e contrária a um nacionalismo-social ou social-nacionalismo na estética musical foi por ele clara e corajosamente expressa em uma sua entrevista no ano fatídico de 1933, quando também, na colonia alemã de São Paulo se faziam notar tendências correspondentes ao desenvolvimento político centro-europeu. Não se tratava, para ele, de considerar de forma sistemática mas superficial elementos rítmicos, melódicos, formais e outras características da música folclórica com a finalidade de criar uma linguagem nacionalisticamente brasileira a serviço de intenções sócio-políticas, mas sim da descoberta e recuperação no patrimônio musical folclórico dos valores de conteúdo que permitiriam fundamentar uma criação e uma vida musical responsáveis do ponto de vista ético-humanista.

Significativamente, Martin Braunwieser fêz questão de salientar, sobretudo em anos de particular ufanismo nacionalista, em concertos realizados com sacríficios de toda a ordem, a importância paradigmatica de autores clássicos, em especial de Mozart e de Haydn. Para ele, os valores éticos humanos intrínsecos ao Classicismo não poderiam ser prerrogativos de determinada época da História. Apesar de toda a multiplicidade de estilos nas culturas musicais das diferentes nações e das diferentes épocas, a música deveria ser impregnada por valores éticos não-passíveis de relativações. Aqui abria-se o caminho para o fundo espiritual mais profundo da música e que tornar-se-ia por décadas linha mestra da atividade da Sociedade Bach de São Paulo, fundada por ele e por Tatiana Braunwieser.

De acordo com essa suas convicções a respeito do sentido ético-humanista da música a partir dos fundamentos próprios transmitidos no patrimônio tradicional, toda a atividade de Martin Braunwieser recebeu um caráter formador e educativo, na qual ele próprio assumia ao mesmo tempo a posição de aprendiz inquiridor da cultura e de pedagogo. Em conseqüência natural dessas suas convicções, ele, que procurou guardar em sí a atitude de eterna criança perante o Espírito, dirigiu a sua principal atenção à musicalização infantil. Canções infantís orientais, alemãs e brasileiras deveriam segundo ele revelar, em simbiose, uma originalidade perdida da cultura e preparar o caminho à compreensão da música contemporânea.

Trabalhos de Martin Braunwieser durante a Expedição de Pesquisas Folclóricas ao Nordeste do Brasil
O seu ideal de realizar um trabalho amplo de musicalização e de formação do espírito comunitário através da música por meio de coros de amadores, na tradição do Volkschor centro-europeu, pôde ser em parte realizado com a instituição do Coral Popular de São Paulo durante a gestão de Mário de Andrade no Departamento de Cultura.

Nessa época, abriu-se-lhe a grande oportunidade de sua vida de imergir no universo cultural popular que tanto admirava: isto se deu através de sua participação como especialista encarregado de anotar cantos transmitidos pela tradição no âmbito da Missão de pesquisas folclóricas organizada pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo em fins da década de trinta.

Dessa viagem trouxe ele não apenas gravações e materiais que deveriam fornecer as bases para o trabalho de décadas do arquivo sonoro de São Paulo, mas também a vivência da integralidade da visão do mundo inerente às tradições acompanhadas por música e dança do Nordeste do Brasil e que procuraria revitalizar no seu trabalho junto às crianças dos parques infantís de São Paulo, cuja orientação musical permaneceu em suas mãos por várias décadas.

Cena IX. Bailado do Praiá, com música de Martin Braunwieser baseada em documentos por ele coletados durante a Missão Folclórica e conservados na Discoteca Municipal de São Paulo
Poderíamos aquí ainda recordar a atuação de Martin Braunwieser à frente dos Corais Operários de São Paulo, como regente e organizador de numerosos concertos e sobretudo como professor de Canto Orfeônico em instituições formadoras de mestres de vários milhares de alunos de escolas primárias e ginásios de todo o Estado de São Paulo. De um ponto de vista mais genérico poderíamos também recordar a sua correspondência com Albert Schweizer e, correspondentemente, o seu absoluto respeito à Vida, manifestado por sua dedicação à natureza em época que ainda não se falava em ecologia. Toda a sua atividade, porém, por mais diversificada que tenha sido, apresenta-se aos nossos olhos como impregnada de uma coerência íntima e contínua através de quase um século na constante inquirição dos fundamentos musicológicos e espirituais da cultura musical, o que se relaciona sob os mais diversos aspectos com o tema do nosso Congresso.

Essa visão dirigida aos fundamentos da cultura musical, portanto, e não à fenomenologia superficial de características identificadoras de um determinado estilo ou à consideração meramente sociológica de questões da antropologia musical é uma das razões pelas quais rememoramos nesta ocasião Martin Braunwieser.

Para finalizar esta curta evocação, nós, que neste congresso nos ocupamos com questões dedicadas às culturas indígenas, devemos ouvir por uma última vez algumas frases que Martin Braunwieser repetidamente pronunciou em discursos de formatura de centenas de educadores musicais de São Paulo:

 "Distinta assistência! Quero abordar com poucas palavras um assunto que me prendeu sempre de maneira especial: a prática de música entre ameríndios.
Ficamos sobremaneira impressionados ao ler os livros dos primeiros viajantes estrangeiros que nos visitaram no decurso do século XVI, quando observamos que quase todos eles mencionam alguns fatos sobre a prática da música entre os amerídios. Aí estão para prová-lo as descrições de Jean de Léry, André Thevet, Yves d'Evreux, Claude d'Abbeville, Hans Staden, Ulrich Schmidel e outros.
Mais do que instrutivo é o livro de Gabriel Soares de Souza, 'Tratado descritivo do Brasil', que é uma das notáveis obras da mentalidade portuguesa no século XVI.
O primeiro citado, Jean de Léry, chegou no ano de 1557 ao Brasil e permaneceu mais ou menos um ano no Rio de Janeiro, então ocupado por franceses. O livro intitulado 'Viagem à terra do Brasil' de Jean de Léry tem um valor excepcional como documento musical. No seu livro estão registrados alguns cantos tupís: os documentos mais antigos que possuimos de nossa música ameríndia.
É interessante lembrar que uma dessas melodias, anotadas por Jean de Léry, foi utilizada como tema principal por Camargo Guarnieri numa de suas eminentes obras.
Jean de Léry escreve que a dança constitui uma ocupação comum dos nativos e o canto acompanha as danças.
Pergunto: entre nós o canto constitui também uma ocupação comum?
Existiam entre os ameríndios cantos sobre os mais diversos assuntos da vida que rodeava essa gente.
(...)
Essa inclinação espontânea dos ameríndios para o canto, a dança, encontra-se, até um certo grau, ainda hoje em determinadas regiões.
Eu apreciei-as pessoalmente entre os moradores do interior do Nordeste, onde, depois do trabalho do dia, uma grande parte da população, homens, mulheres, adolescentes e crianças, formam um roda, cantam e dançam.
(...)
Acho de suma importância para a nossa vida uma atitude dos tupinambás, os quais Jean de Léry trata de selvagens; uma atitude dos selvagens que ao meu modo de ver, é uma atitude que merece ser imitada e meditada, também por não selvagens.
Uma atitude dos tupinambás, dos ameríndios em geral, que devia ser de conhecimento de muitos dos nossos alunos - (....) recomendai essa atitude dos ameríndios aos seus futuros alunos.
(...)
Finalizando, volto ao tema principal dessas minhas simples palavras, recomendando a todos cantar, fazer música com espontaneidade, cantar para cantar, cantar com prazer moral, cantar de livre vontade, cantar de motu proprio. A espontaneidade de cantar dos tupinambás, (...) deve ser um traço marcante no programa do futuro trabalho de ensinar música."

Martin Braunwieser

 

Com estas palavras de apreço às culturas musicais indígenas de um músico de Salzburg, que como nenhum outro seguiu o caminho de Sigismund Ritter von Neukomm no cultivo do humanismo clássico e do espírito de Mozart no Brasil, fechamos esta nossa curta memória. A modesta monografia que hoje está sendo apresentada nada mais pretendia do que, em corrida contra o tempo, poder ser entregue a Martin Braunwieser no ano em que completou 90 anos. Era uma obrigação de consciência demonstrar que os brasileiros sabem reconhecer e agradecer o trabalho desprendido em pról dos valores humanos e culturais e que a história ainda pode fazer justiça, mesmo em época dominada pela propaganda nos meios de comunicação, àqueles que labutam silenciosamente e esquecidos de sí próprios. O destino quís que esse intento pudesse ser realizado e Martin Braunwieser pôde receber essa monografia duas semanas antes do término de sua vida. Com isso, o objetivo primordial e a razão de ser do trabalho, que não fora pensado para ser publicado, foram plenamente cumpridos. O que nos resta, agora, é apenas meditar com gratidão sobre o exemplo de vida oferecido por Martin Braunwieser e dedicar-nos igualmente, com toda a nossa capacidade e com toda a nossa alma, não ao engrandecimento de nosso nome, mas sim às tarefas imensas que se nos colocam no Brasil.

 

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