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N° 21 (1993: 1)


 

QUESTÕES METODOLÓGICAS CONCERNENTES AO ESTUDO DAS CULTURAS MUSICAIS INDÍGENAS

Prof. Dr.Dr.h.c.Josef Kuckertz
Diretor do Instituto de Musicologia Comparada da Universidade Livre de Berlim
(Trad. A. A. Bispo)

 

Perspectivas histórico-universais na Europa Ocidental levaram determinadas ciências empíricas em fins do século XIX ao início das investigações que ultrapassaram de muito as fronteiras e a história da Europa. Relatos de países distantes e testemunhos escritos do passado já não bastavam para satisfazer tal desejo de conhecimentos; procurou-se antes traçar o caminho de vida da Humanidade com base em fundos arqueológicos e a partir de observações de povos que pareciam ser arcaicos. Nesse clima intelectual colocou-se para a Ciência da Música a questão da natureza da música extra-européia. A sua pesquisa foi, já em 1885, integrada como um ramo autônomo por Guido Adler no seu "Edifício Global da Ciência da Música", sob o nome "Musicologia" ou "Ciência Comparativa da Música". (Guido Adler, Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft, in: Vierteljahresschrift für Musikwissenschaft 1, 1985, 14ss)

Em 1919, o historiógrafo Georg Schünemann salientou os campos particulares - como sistema tonal, formação melódica, ornamentação, variação, e outros - nos quais exemplos de música extra-européia poderiam servir para melhor esclarecer a musica do Ocidente. (Georg Schünemann: Über die Beziehungen der vergleichenden Musikwissenschaft zur Musikgeschichte, in: Archiv für Musikwissenschaft II/1919-20, 175ss.)

À época do artigo de Schünemann, a musicologia comparada já contava, em Berlim, com quase 20 anos de produtiva atividade de investigações. Ela fora fundada em 1900 por Carl Stumpf, e concentrou-se totalmente em registros sonoros que puderam ser realizados desde 1890 por meio de fonógrafos Edison. Numerosos etnólogos trouxeram registros sonoros de suas expedições, de modo que o arquivo de fonogramas de Berlim já possuia, em 1910, 3000 rolos. Ainda que tais registros fossem tecnicamente imperfeitos, segundo os nossos critérios de hoje, e mesmo que os pesquisadores de Berlim os achassem primeiramente estranhos e denaturados, não descansaram enquanto não puderam compreender as leis estruturais das formações sonoras estranhas. (cf. Carl Stumpf: Das Berliner Phonogrammarchiv, in: Internationale Wochenschrift für Wissenschaft, Kunst und Technik, ed. por Paul Hinneberg, Berlin, 22 de fevereiro de 1908, coluna 233-234).

Seguindo o mundial interesse pela História, dedicaram-se eles em primeiro lugar àqueles fonogramas que pareciam poder revelar o caminho do desenvolvimento musical desde os primeiros tempos da Humanidade. Onde as fontes não alcançavam, procuraram ajuda por meio de hipóteses.

Os intentos da Escola de Berlim tiveram pronta recepção na América do Norte ao redor de 1920. Alí intensificaram-se os esforços, após 1933, através de vários representantes da disciplina de Berlim que tiveram de abandonar a Alemanha em conseqüência da transformação política. Logo porém enfraqueceu a sua ação, até que um pequeno grupo de eruditos revivificaram a disciplina sob o título "Ethnomusicology". O ponto de partida americano trouxe uma certa mudança, pois a atenção dirigiu-se muito mais fortemente ao Homem que faz música e à Música como expressão de cada cultura individual. Para nós, na Alemanha, isso significou uma ampliação da base, o que assimilamos com agrado.

Em resumo, pode-se dizer que nós, hoje, em Berlim, nos esforçamos em considerar a música e o homem que faz música de todo o mundo no seu respectivo contexto cultural próprio. A pesquisa local e especializada, porém, além da quantidade de registros sonoros que hoje temos à disposição nos obriga à divisão de trabalho, também entre os cientistas. Além do mais, museus e arquivos em numerosos países organizaram coleções de instrumentos e de registros sonoros, de modo que os cientistas os podem estudar nas suas proximidades. Os resultados das pesquisas aumentam constantemente e são recebidos com gratidão pelo observador distante geográficamente, que não pode estar sempre à altura do que ocorre. Isso também vale para o Brasil, cuja música folclórica e tribal já foi por nós várias vezes considerada no Instituto de Musicologia Comparada da Universidade Livre de Berlim. Além do mais, eu próprio sou sócio da Sociedade Brasileira de Musicologia, de modo que recebo também por este lado informações. Na consideração de pesquisas sobre a música no Brasil quero tentar esboçar uma metodologia do estudo de culturas musicais indígenas.

Partindo-se da premissa que a música em sí é o nosso primordial objeto de pesquisa, então todo o tipo de trabalho precisaria ter o seu início com a sua mais completa documentação. Seria necessário dedicar-se individualmente a cada comunidade, local ou regional, e isso de uma forma que garantisse uma continuidade flexível de sua própria tradição. No levantamento poderiam tomar parte os membros da própria comunidade, semelhantemente à pesquisa da canção folclórica européia, iniciada no século XVIII por poetas e historiadores e mais tarde incentivada por cientistas em arquivos, assim como por testemunhos locais e membros de grupos corais. Ao mesmo tempo, os cientistas de diferentes ramos disciplinares deveriam se esforçar em procurar fontes mais antigas, ou seja, testemunhos escritos e registros sonoros de expedições anteriores. Pode ser que encontre-se um ou outro documento de importância, até então não considerado ou bem guardado como tesouro particular em algum local escondido. Tais documentos são indispensáveis quando se deseja entender retrospectivamente as tradições.

Anthology of Brazilian Indian Music. Ethnic Folkways Library FE 4311. Recorded and with notes by Harold Schultz and Vilma Chiara, São Paulo State Museum
Como se pode fixar por meio de registros sonoros e filmes o estado atual da tradição, então deve-se levantar a questão das informações necessárias para o estudo global do fato concreto. Para a compreensão da estrutura musical e para comparar diversos registros sonoros, o cientista fará freqüentemente, seja no local do registro, seja mais tarde no arquivo, uma transcrição para um catálogo ou para uma publicação. A notação obriga-o a ouvir atentamente, até mesmo a aguçar o ouvido por meio dos olhos. Para que o especialista não se confunda no caso de complexos sonoros, ele necessita de indicações dos próprios músicos a respeito de seus costumes auditivos e de fazer música. Isso pode dizer respeito à melodia e escala, à sonoridade ou ornamentação, rítmo e forma etc. Tanto mais conhecidos forem os conceitos ou teorias sobre a música, tanto mais próximos da realidade serão as análises.

Nem todas as gravações podem ser grafadas. Imitações de vozes de animais, como encontramos por ex. entre os Kayabí do Mato Grosso (cf. o disco Music from Mato Grosso, ed. Edward M. Weser 1955, Ethnic Folkways Library FE 4446, lado A, faixa 10) dificilmente podem ser transcritas em grafia musical, mas ouve-se claramente o jogo com a voz, de modo que pelo menos pode-se falar de um início de "música". Quanto a recitações de texto, deve-se refletir se vale a pena realizar uma notação. Em todo o caso, ela pressupõe a notação da palavra; ela só faz sentido se o que determinar a impressão sonora não for a melodia da língua mas sim um arranjamento sonoro. (cf. o CD Brésil Central, Chants et danses des Indiens Kaiapó, ed. G. Veerwijer -registros dos anos 1966-1981-, Gef: AIMP XIV, lado A, faixa 1. Esse é um conto de velhos tempos, que inclui cantos de ancestrais e que cambia de tom de fala ao canto).

Em geral vale dizer que nós não mais consideramos tais expressões sonoras como "primitivas" ou "pré-históricas", mas sim como impressionantes jogos de voz humana, cuja função e significado devem ser indagados junto aos executantes e aos ouvintes do local.

Amazonie: Folklore des tribus indiennes. Film "Amazonie: mes premiers Indiens", de Pierre Dubois. Disques VDE 3091, Lausanne
Para a compreensão de uma tradição seria também de auxílio se os músicos e os ouvintes de uma comunidade soubessem dizer algo a respeito da música de seus antepassados, mesmo se a memória apenas alcance a geração dos avós. Também úteis são indicações a respeito de elos com grupos vizinhos, principalmente onde se cultive canto em conjunto ou danças. Mesmo que tal visão retrospectiva seja limitada, ela pode ser completada possivelmente com documentos escritos e sonoros mais antigos. Somente a partir de diferentes fontes e observações poderá o pesquisador ganhar fatos seguros e tirar conclusões corretas.

Freqüentemente não se pode compreender as formações sonoras, enquanto o contexto for desconhecido. Esso vale sobretudo para rituais, mas também para a música de festividades, ou até mesmo para cantos de atividades quotidianas. Pode ser que se encontrem indícios nos textos dos cantos, e por isso deve-se sempre anotá-los e traduzí-los. As festividades exigem, além do mais, descrições do seu desenvolvimento exterior, e para isso deve-se observar exatamente danças e cortejos. Hoje pode-se utilizar de filmes e videos para o registro de tais acontecimentos; um comentário com notícias a respeito dos pontos decisivos deve sempre ser feito. De difícil compreensão são geralmente os rituais, especialmente se são desenvolvidos em locais secretos, de forma a impedir a observação de estranhos. Com relação a ritos secretos ouve-se às vezes a recomendação de que os pesquisadores devem iniciar-se, para possibilitar uma melhor compreensão. Tal decisão só serve à ciência se as experiências puderem ser posteriormente publicadas. Mais acertado me parece, ao contrário, não expor aquilo que as pessoas desejam manter em segrêdo, porém indagar até o ponto em que a pessoa pode responder. Onde porém for possível assistir a tais cerimônias sem perigo, deve-se visitá-las, pois elas apresentam freqüentemente o melhor que uma cultura pode oferecer em termos de música e dança. Só conheço poucos trechos musicais de cerimônias de índios do Brasil, e estes foram gravados na sua maioria nos anos sessenta, quando grupos de pesquisadores de São Paulo, Paris e Genebra penetraram no território superior do Xingu. (Trata-se ao lado da publicações citadas nas notas 11 e 12 da Anthology of Brazilian Indian Music" ed. por Harald Schultz e Vilma Chiara, 1962, Ethnic Folkways Library FE 4311, lado A, faixa 2, "Sacred-mask-dance" do Javahe, assim como três discos de título "Musique indienne du Brésil", ed. por Simone Dreyfuß, 1955-56, Vogue LVLX-194, MC 20.137 e VG 403, assim como títulos isolados)

Se quiséssemos compreender melhor as cerimônias, então teríamos necessidade não só de exemplos sonoros mais longos e contínuos como também de documentações muito mais completas. Só assim poder-se-ia aprofundar realmente na expectativa dos participantes, por exemplo de danças de máscaras ou de cerimônias de caça, permitindo-se uma recondução da forma e da arte ritual aos motivos humanos.

O que foi até agora dito vale só para aqueles grupos de índios que conservaram os seus cantos e danças tradicionais longe da civilização moderna. Em muitas regiões, os ameríndios, em contacto com os imigrantes europeus, - durante o século XX também sob a influência da música popular -, assimilaram o novo e abandonaram o antigo. O resultado é a mistura de estilos em diferentes graus, e quando se considera ao lado das melodias e dos rítmos os instrumentos musicais assimilados, então o espectro musical é praticamente ilimitado. Aquí por ex. se escuta numa gravação do Perú conjuntos de flautas com ou sem tambores do Chunchu e Colla, alí um Duo de flauta e tambor ao lado de um grupo de guitarras Charango do Wayno, (Disco Traditional Music of Peru, gravado por Babs Brown e Samuel Marti, 1958, Ethnic Folkways Library FE 4456) enquanto em outra gravação índios Pipil de Salvador demonstram melodias de cunho europeu executadas em acordeon e na marimba - conhecida de resto da África. (Disco "The Pipil Indians of Salvador", ed. David Blair Stiffler, 1983; Ethnic Folkways Library FE 4244)

Grupos cristãos de Maya, Cora e Totonaken do Mexico apresentam num outro disco, ao lado de cantos, música instrumental para flauta e tambor, violinos e harpas, além de acordeon e trompetes com acompanhamento de tambor. As peças registradas pertencem na sua maioria a festas de santos; uma seqüência faz parte das solenidades da Semana Santa, inclusive de uma procissão de Sexta-Feira Santa. (Disco "Musiques des communautés indigènes du Mexico", gravadas por Fl. Jouffla, M. Moréa e S. Roterman, 1969-70, VOGUE LDM 30103) Um outro disco apresenta sobretudo cantos de amor, mas também peças para festas religiosas e profanas, executadas por músicos Tarascan do México. Flautas e tambores ou chirimias e tambores soam nessas festas, violinos e guitarras são executadas para divertimentos com ou sem canto. Algumas dessas peças poderiam ser consideradas como música centro-européia, enquanto que em outras se percebe a herança indígena dos músicos. Os textos, em espanhol, indicam o direcionamento dos músicos profissionais a um público mais amplo. No caderno que acompanha a gravação tem-se os poemas com as respectivas traduções em inglês. (Disco "Music of the Tarascan Indians of Mexico", gravado por Henrietta Yurchenco, 1965-66 (C.1970), ASCH Mankind Series AHM 4217)

Esses são apenas alguns exemplos da diversidade de produtos de contactos, ou seja, de modificações após a penetração mútua de diferentes estilos. Eles também não devem ser esquecidos pela Musicologia, mas segundo a sua natureza pertencem muito mais à pesquisa do Folclore e da Música Popular (Volksmusik) do que à Etnomusicologia. Os folcloristas e os filólogos enteressam-se sobretudo pelo conteúdo e pela linguagem dos textos, enquanto que as melodias e os rítmos, assim como a música instrumental folclórica deveriam ser investigados segundo pontos de vista musicológicos. Certamente a pesquisa folclórica no Brasil considerará tais áreas de contacto, tanto mais que ela já se interessa presentemente com rituais indígenas nas proximidades da metrópole do Rio de Janeiro.

Assim, a nossa atenção se dirige mais uma vez àquelas comunidades tribais que ainda se situam longe dos centros de maior população e movimentação do Brasil, mas que amanhã possivelmente terão que lutar pela sobrevivência. Elas merecem ajuda e apoio, talvez impulsos para auto-ajuda num mundo em rápida transformação. Se aqui deve ser feito algo de positivo, então as numerosas tarefas devem ser atacadas por vários lados. A pesquisa da música deveria concentrar-se no seu escopo, no fenômeno Música e para todos os outros campos limítrofes basear-se em especialistas competentes. Por outro lado, ela também coloca-se com agrado a serviço de outras disciplinas científicas, se puder ajudar a dar perfil à compreensão integral de cada etnia individual. Deve-se procurar o trabalho conjunto, para o bem do Homem.

(Trad. A.A.B.)

 

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