Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1999 by ISMPS e.V. © 2006 nova edição by ISMPS e.V.
Todos os direitos reservados


»»» impressum -------------- »»» índice geral -------------- »»» www.brasil-europa.eu

N° 20 (1992: 6)


 

INVESTIGAÇÃO DE FUNDAMENTOS ARTÍSTICOS E ESPIRITUAIS DA CULTURA MUSICAL
E A PRÁTICA DE EXECUÇÃO MUSICAL

Dr. Walter Marzilli
Istituto Pontificio di Musica Sacra
(Trad. A. A. Bispo)

 

A amplitude do tema em questão pode oferecer inumeráveis incentivos à reflexão, mas a presença do adjetivo "espiritual" no título desta exposição parece sugerir a atitude adequada com a qual é oportuno dela avizinhar-se. As questões ligadas a problemas especificamente práticos da execução musical em relação com a investigação científica vivem de fato em função de causalidade com a vasta problemática de ordem espiritual conexa com a Musica Sacra, à qual se faz preceder uma premissa de carácter geral.

A arte musical, como todas as outras, está em contínuo vir-a-ser, e a fruição da obra de arte nas diversas épocas se vale dos instrumentos de percepção presentes no momento, entre os quais (situação sócio-econômica, cultura, tradição, etc.) desempenham um papel predominante os sentidos do homem. (A este propósito convém recordar que pela primeira execução da Matthäuspassion de Johann Sebastian Bach acontecida na Gewandhaus da Lípsia, em 1829, Felix Mendelssohn-Bartholdy dispunha de um coro de trezentas pessoas. A escolha de um número assim elevado de cantores, não característico para Bach, era resultado da cultura romântica e do hábito de ouvir acontecimentos sonoros de grandes proporções, como aqueles da grande orquestra sinfônica romântica).

Um quadro do século XVI e a mensagem nele contida são portanto apenas aparentemente iguais a sí próprios. Na realidade, mudando-se os olhos que os observam, agora habituados às cores químicas, brilhantes, prepotentemente colocadas adiante da vista do homem moderno, o quadro sofre um espontâneo processo de revisitação relacionado com um modo diverso de observar, pelo qual as suas cores e a sua mensagem artística se tornam de certa maneira atualizadas. No mesmo sentido, o nosso órgão auditivo, hoje, parece maculado pelos rumores do mundo atual (por exemplo pelos sons artificiais dos reprodutores sonoros considerados de alta "fidelidade"), de forma que, na pesquisa filológica da reconstrução do "som" de um coro do Renascimento, por exemplo, o objeto ao qual isso é endereçado resulta assim transformado de por em risco o seu não reconhecimento como forma de arte.

Este tipo de aproximação, e a necessidade de que arte e filologia sejam mantidas complementares, para que uma não se torne a-histórica e a outra estéril, tornam plausível o mover-se com uma atitude de cautela na re-proposição da obra de arte de uma outra época em direção a um compromisso razoável entre aquela que é a hipotética reconstrução de um som perdido e a real percepção do mesmo, a que deve ter suficiente força de arredondamento de eventuais cantos que se possam criar em conseqüência de posições inamovíveis.

Hoje, uma vastíssima produção sobre temas de caráter filológico é facilmente consultável de qualquer musicista que tal queira considerar, juntamente com gravações, estudos e questionamentos científicos indispensáveis par garantir-lhe a professionalidade.

Mas não é este o ponto. A base das relações entre a investigação científica e a prática musical, no campo da Musica Sacra, assenta-se no fato de que se trata de oração. Uma missa polifônica não é simplesmente um acontecimento musical inserido na Liturgia. É ela própria Liturgia.

Um pesquisa científica que não parta deste pressuposto é ao máximo uma investigação filológica acurada que pode elucidar alguns aspectos técnicos da partitura, mas a verdade da obra musical continua encoberta. O problema não está na reconstrução do som de um coro antigo ou no estudo das alterações na polifonia renascentista, mas sim na investigação dos fundamentos espirituais sobre os quais a Musica Sacra se fundamenta, se digna deste adjetivo.

O executante deve saber reconhecer e trazer à luz a fé do compositor, a sua comoção, através de sua própria fé. De outra forma estaremos de frente a atores, talvez grandes artistas, que interpretam só a si próprios, negando a realidade artística e espiritual da obra que interpretam.

Sob esta luz parece ser uma sorte não haver o registro de uma execução renascentista, que poderia forçar o executante a limitar-se em copiar-lhe o som, o colorido, reduzindo a isto a procura da verdade e a pesquisa científica. Ao contrário, livre deste vínculo, ele pode vivificar a obra seguindo o espírito na qual foi gerada.

Seguir este fio condutor na indagação científica da prática musical conduziria finalmente à interpretação de modo correto e vivo das determinações do Concilio Vaticano II em matéria de arte; perder de vista esta estrada significa encaminhar-se em direção errada, na qual se perdeu atualmente a arte da Musica Sacra.

Uma recente legislação (Congregazione per il Culto Divino, I concerti nelle chiese, Roma, 5 de novembro de 1987, Notitiae, XXIV, 1988, 33-39) reforçou a proibição de executar música profana (do latim pro fanum: fora do templo) nas igrejas, promovendo a adoção dos repertórios de Musica Sacra nos concertos. Este fato, uma vez colocado na situação atual, pode dar vida a algumas reflexões.
De fato nos encontramos a viver em um período histórico no qual o repertório musical autenticamente sacro-litúrgico não encontra mais espontaneamente lugar na sua sede natural que é a liturgia. (Sacrosanctum Concilium, Cap. VI,112,114,115,116)

Os milhares de coros que antes se reuniam para aprofundir e fazer reviver o patrimônio da Musica Sacra se vêem constrangidos a endereçar em modo diverso os seus esforços, abandonando a liturgia pelos concertos. Na realidade, a legislação de que aquí se trata deve ser interpretada só como um freio aos frequentes abusos sucedidos por ocasião de concertos nas igrejas (espetáculos de dignidade dúbia, baixas operações comerciais, etc.), certamente não como uma legitimação do desvio da Musica Sacra da liturgia para o concerto. Isto significaria trair os fundamentos espirituais da Musica Sacra, que a viu nascer na liturgia para a liturgia, e renegar ainda uma vez os dizeres do Concilio Vaticano II, calorosamente voltados ao cultivo e à conservacão do patrimônio musical sacro na liturgia.144

O andante de uma sonata desenvolve toda a sua força emotiva se estiver no espaço entre os dois allegro inicial e final; os coloridos delicadamente aquarelados de um Christe, composto com comoção e executado com íntima participação, brilham na sua luz verdadeira se viver entre os dois Kyrie. Assim só na liturgia uma peça para o ofertório pode exprimir toda a sua eficácia, levando o fiel da concentração meditativa e intimista da liturgia da Palavra ao mistério da consagração, assim como um Communio consegue exaltar a paz interior em comunhão com Deus como nenhuma palavra humana pode fazer. Tirados do seu contexto natural litúrgico e inseridos unicamente nos concertos, ou viviseccionados em um workshop de procura técnica de suas estruturas internas, essas peças escondem a sua beleza e a sua verdade, perdendo definitivamente a própria eficácia.

Seria como se, para melhor apreciar a harmonia e a beleza contidas na PIETÁ de Michelangelo, quiséssemos observar atentamente através de uma lente de aumento só alguns cabelos do Cristo. Aproximar-se de um quadro de Monet com a finalidade de descobrir nele só as pinceladas anula o encanto da visão de conjunto. Assim, após a necessária análise atenta de uma partitura na solidão do próprio estudo, o musicista de igreja não se pode eximir de recrear a harmonia da obra musical sacra na sua totalidade artística e litúrgica, colocando-a preciosamente no berço na qual ela nasceu.

Não só em conformidade com o Concílio Vaticano II, mas sim como resultado de uma indagação científica sobre a natureza da Musica Sacra nasce uma ulterior reflexão:

a necessidade que o musicista de igreja sobreponha e dirija o seu trabalho à gloria de Deus e à santificação dos fiéis. (Sacrosanctum Concilium, Cap. VI, 112) Para além dos equilíbrios de carácter científico, esta disposição interior é a medida melhor para pesar e regular a eventualidade de abusos e exageros de execução que entram de fato na esfera do subjetivismo arbitrário.

A isso devem ser relacionados o comportamento de todo musicista de igreja (também o coro), dos quais se deve poder perceber o valor da tarefa ministerial que se revestem na liturgia. (Sacrosanctum Concilium, Cap I, 29) O traje, a entrada na igreja, a disposição, o comportamento, a saída, além também, obviamente, a qualidade da execução, necessitam de uma atenta maturidade, para não ajudarem a fazer cair na banalidade aquilo que não é absolutamente banal.

Reconhecendo que o complexo musical ativo na Liturgia faz parte da assembléia dos fiéis (Cf. Inter Oecumenici, Capa. V, 97) , mas nunca esquecendo nem a tarefa ministerial de que se reveste, nem a sua validade artística, parece não ser justificável empreender um processo de massificacão no interior da assembléia dos fiéis, em conseqüência do qual o complexo correria o risco de ver desacreditado o seu ministério e debilitada a funcionalidade artística que lhe são próprias, invalidando os pressupostos artísticos e espirituais da sua prática musical.

Não parece inútil neste ponto salientar como deste modo a liturgia venha a perder de um só golpe um instrumento que reune em sí uma série de importantes valências, cada uma delas simbioticamente conexa com as outras.

Valência filológica

A indagação científica sobre a finalidade artística da música e da prática musical valoriza a necessidade da lingua latina. A partir do canto gregoriano até a polifonia - também contemporânea, vive um vastíssimo repertório intraduzível da língua latina. A isso deve-se aplicar a mesma coerência que se permite no caso das obras teatrais, que são executadas na sua língua original. As tentativas de traduzir os textos musicados em canto gregoriano criaram monstros híbridos de vida breve.
O uso das línguas vernáculas na liturgia aparece nos documentos conciliares só como uma concessão sob o controle da autoridade eclesiástica.(Cfr. Sacrosanctum Concilium, Cap.I, 36,37,39,40,54; Inter Oecumenici, Cap. I, 44; II, 48g,57) Na realidade, sob os olhos de todos, a legítima ação pastoral filiada às línguas vernáculas teve uma má-interpretação, levando a uma proliferação de textos originais e relativas músicas de tal incontrolável proporção, e de fato incontrolada, que sufocou tudo que fosse tradicionalmente ligado à lingua latina, até tirá-lo da liturgia. (Isto contribuiu a dar vida a toda uma série de liturgias particulares, nacionais e infra-nacionais que arriscam de fragmentar a universalidade da mensagem)
O legítimo re-apropriar-se do vastíssimo repertório musical sacro em língua latina garante a continuidade de uma tradição que tem as suas raízes no conceito de universalidade da Igreja.

Valência artística

A expressão musical pode ter por sí valência artística, mas no caso específico da Musica Sacra na liturgia teocêntrica (Não parece supérfluo o adjetivo teocêntrico perante o direcionamento antropocêntrico que a liturgia parece ter tomado nos anos posteriores ao Concílio) , endereçada à glória de Deus e à santificação dos fiéis, essa assume contornos que a elevam a forma de arte sublime. A Igreja mostrou no passado uma sensibilidade particular perante as múltiplas formas de arte (Cfr. Sacrosanctum Concilium, Cap. I, 46; VII, 122, 124 e 128; Inter mirifica, 24; Gaudium et spes, 7; Apostolicam actuositatem, 7; Inter Oecumenici, Cap. I, 13c; Eucharisticum mysterium, Parte II, 24) : os edifícios de culto encerram preciosas obras de arquitetura (Um aprofundamento das modificações da arquitetura interna das igrejas ocorridas após o Concílio seria oportuno, levaria porém muito longe) , escultura, pintura, poesia. A que mais do que todas sofreu os efeitos deletérios da situação atual parece ser a música artísticamente válida, apesar de ser a única que implica em múltiples aspectos contemporâneos do ser humano: o ascultar do fenômeno sonoro, a comoção do coração que daí deriva, a percepção intelectiva da mensagem textual, o desenvolvimento da capacidade meditativa.

O afastamento da verdadeira arte musical da liturgia ocasiona uma esterilidade de ânimo e uma insensibilidade contrária à própria natureza do homem. (Tem-se como resultado a contradição entre os dizeres do Concílio no concernente à manutenção do patrimônio sacro-musical)

A forma de arte duradoura nasce da intuição e da inspiração do artista. (Neste caso se faz referência à figura do maestro que forma e amadurece o seu "instrumento" e aperfeiçoa a própria capacidade de "tocá-lo" em muitas horas de ensaio). Deve-se considerar a validade artística do coro como instrumento preparado, eficiente e indispensável para a execução da Musica Sacra na Liturgia. Artes tais como a pintura ou a escultura não têm necessidade de mediadores entre a obra e a sua fruição, enquanto que a música obviamente necessita da intervenção de um executante que, através da sua preparação e do uso de um "instrumento" adequado (coros, scholae, capelas musicais), faça existir a obra de arte, dando vida aos sinais convencionais do alfabeto musical assinalados no papel, de outra forma mudos e estéreis.

Sobre a base da indagação científica é necessário uma intervencão creativa para revivificar uma música do passado. Toda a notação de que dispomos não é mais do que um auxílio, uma espécie de pro-memoria do acontecimento musical.

Ora, parece racionalmente improponível desclassificar a qualidade artística do executante sem prejudicar a validade artística da obra, e isto sucede por exemplo quando se substitui o coro pela assembléia, que, pela sua própria natureza, pode ter limitada capacidade musical e expressiva.

A questão parece cair sobre so própria, ou seja, se é a Musica Sacra que decai por falta de instrumentos executivos adequados, ou se são os instrumentos que sofrem pela precedente queda da Musica Sacra. Por isso tudo parece razoável abraçar a segunda hipótese, não obstante seja essa tragicamente contrastante com as palavras do Concílio. (Cfr. Sacrosanctum Concilium, 112,114 e 116)

Valência espiritual

É uma consequência direta da precedente. Essa resulta evidente quando a actuosa participatio fidelium é obtida por meio da asculta da Musica sacra na execucão do coro

A esta forma de elevação espiritual dos fiéis se deve atribuir uma eficácia muito maior com respeito às ocasiões nas quais a assembléia é chamada a cantar sempre e tudo. Nestes casos essa dificilmente chega a concentrar-se sobre o mistério que se está celebrando e facilmente não alcança uma adequada elevação espiritual, quando não a renega cantando cançonetas cujo valor artístico, litúrgico e salvifico agrede a essência da liturgia, humanizando os conteúdos no sentido mais banalizante do termo.

Sobre a figura do músico de igreja, em conclusão, cae uma série de direitos, mas também de responsabilidade, cujo peso não é sustentável só com o ser um "bom músico", no qual caso existe a fundamentada possibilidade que ele possa perder a objetividade da indagacão científico-filologica pelo subjetivismo do próprio conceito de "belo artístico". Nem é suficiente ser prevalentemente um "musicólogo", cuja ação pode incorrer no perigo de sacrificar a imprescindível intencionalidade artística à necessidade da filologia. Também a fusão destes dois aspectos na única figura do musicista que possue uma consciencia filológica ou do musicólogo com temperamento artístico não é sem perigos, se as tensões espirituais e pastorais da Musica Sacra ficarem sufocadas na tentativa de mediação entre as necessidades artísticas e aquelas científicas de fazer música.

O que a própria natureza da Musica Sacra pede, em particular na situação atual, é a coexistência do musicista-musicólogo no homem de fé, mantida, esta, tanto mais sólida quanto mais parece necessário agir no âmago de uma liturgia antropocêntrica sem perder o próprio carisma, recebido do Espírito Santo para glorificar a Deus e santificar os fiéis.

A reforçar a profundidade desta condição necessária deve concorrer a consciência de que a Musica Sacra não é executada só por si própria ou para os fiéis presentes à liturgia, mas é ascultada por toda a Igreja visível e invisível, dos anjos e dos beatos defuntos de toda a história da salvação. É esta a realidade que impõe uma atitude de máximo e responsável empenho, tal de levar o musicista àquela profundidade objetiva que uma verdadeira execução da Musica Sacra necessita para ser assim definida.

 

zum Index dieser Ausgabe (Nr. 20)/ao indice deste volume (n° 20)
zur Startseite / à página inicial