Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 17 (1992: 3)


 

1822-1992: 170 anos da Independência do Brasil: Música nas relações culturais

Ciclo de estudos pelos 140 anos do "método português" e do trabalho renovador de A. F. de Castilho e Gonçalves Dias na Educação no mundo de língua portuguesa

ESTRÉIAS POÉTICO-MUSICAIS DE ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO E FRANCISCO NORBERTO DOS SANTOS PINTO (LISBOA, 1853)

Agradecimentos: Gabinete Português de Leitura do Recife 

 

Antonio Alexandre Bispo

 

Não deve passar despercebida, no corrente ano, a passagem do 140° aniversário de um movimento de instrução popular que marcou a História da Educação Musical em Portugal e no Brasil. Trata-se de um movimento peculiarmente açoriano e não unicamente fruto da difusão das iniciativas francesas de educação musical ligadas às Ecoles populaires de chant, ou seja, ao Orphéon de Guillaume-Louis Wilhelm (1781-1842). A importância da repercussão de conceitos e métodos franceses em Lisboa e no Porto deve ser vista sobretudo no sentido de uma preparação do terreno que possibilitaria a expansão desse movimento insular.

Assim, em 21 de agosto de 1852, Antonio Feliciano de Castilho (1800-1875), em carta dirigida a A. da Silva Tullio, diretor do jornal literário A Semana, referiu-se à oportunidade de uma ampla campanha de educação musical:

"Meu caro Director - porque não exhortaes a tanto mancebo de bom e verdadeiro engenho, que hoje por ahi o esperdiçam no ocio ou em assumptos que bem pouco lh'o merecem, porque os não exhortaes a fazerem como eu, quanto á intenção e melhor do que eu, quanto á poesia, dedicando-a, e dedicando-se a estes assumptos de civilisação e humanidade? (Estréia Poético-Musicaes para o anno LIII, Lisboa 1853,Typ. Universal - Rua dos Calafate, 114)

Agora que a musica se vai fazer por esse mundo popular, e talvez plebêa, pela feliz reapparição do methodo de Rousseau e Galin, com os esforços de Chevé e Aimé Paris; agora que, até já em Lisboa, pela generosa perseverança do Sr. Cossul, se estão presenciando vulgares, numerosas e irrefragaveis, as demonstrações de quanto esse methodo é efficaz, seguro, infallivel, era agora o praso, me parece, para aproveitarem a boa venida todos os nossos poetas, que dizendo-se socialistas e humanitarios, não limitassem o seu socialismo em declamações escusadas, e não satisfizessem a sua humanidade em formular récipes philosophicos e politicos, sem curarem de saber se ha as drogas que receitam, se teem a efficacia que lhes presupõem, se existe pharmaceutico para as aviar, enfermeiros para as ministrarem, e até no enferno, fé e vontade para se arriscar á experiencia." (op.cit. 61-62)

O objetivo dessa carta de A. F. de Castilho, na qual ele próprio situa os seus conceitos educativos no contexto político de sua época, era a divulgação dos versos do Cântico da Caridade, com música de Artur Frederico Reinharth, verdadeiro hino que marca o início histórico de um movimento educativo popular com raízes na cultura musical própria do mundo português, ou seja, nas práticas tradicionais relacionadas com o Espírito Santo:

Voz
Amores na terra, no Empyreo um thesouro
Andamos vendendo; correi a infeirar;
Mercai, se haveis cobre; mercai, se haveis oiro;
Por todos os preços se póde mercar
Côro
Com Deus, e ávante, amigos,
Cantando a Caridade!
Mendigos de mendigos,
Homens da humanidade,
Vamos batendo á porta
Dos corações de bem!
Um Deus, que os bons conforta,
Lá lhes dará que dem.
Voz
[...]
A' flôr das virtudes; á que é toda extremos;
Cantado nas harpas de mil seraphins,
Triumpho! triumpho! triumpho entoemos,
Ao som dos tymbales, ao som dos clarins!

 


"A cette époque (1801-1877) vécut à S. Miguel des Açores un véritable artiste, presque ignoré et laissé dans l'oubli par la plupart de ses contemporains, le Père Joaquim Silvestre Serrão. Quoique vivant dans un milieu fort restreint et en dépit de sa modestie excessive, Serrão tenta la rénovation de la musique sacrée, en s'inspirant des classiques de l'Église. Il laissa de nombreuses compositions, dont nous citerons les Matinas, de la semaine sainte."

Francisco de Lacerda, "La musique et les musiciens" Le Portugal géographique, ethnologique, etc.", Paris: Larousse s/d, 204-213, 212

"A historia d'este pobre cantico encerra uma lição [...]: a Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel, obtido do governo um terreno, para ahi levantar á sua custa um edificio para os seus trabalhos, todos inteiramente beneficos, desinteresseiros e christãos, determinou recorrer á caridade publica, para aquella obra de publica vantagem, e de mil vantagens manifestas, e vai certa de não perder as passadas. O povo daquella ilha sabe já por experiencia de annos que a Sociedade, que em escolas nocturnas e gratuitas o anda instruindo, polindo e melhorando, a elle e aos seus filhinhos, é uma cousa bôa e santa, a qual elle, que tem consciencia deve ajudar; portanto como se trata agora de a albergar, para que ella possa em casa sua, muito franca e muito hospedeira, receber os engeitados da fortuna, para lhes ensinar as lettras, a moral, a hygiene, os officios mecanicos, a economia caseira, e mil outras coisas sem brilho, mas bonissimas e promettedoras de melhor fortuna, ninguem recusará repartir com ella do seu muito ou pouco. Uma deputação do gremio da Sociedade, em que, por ventura, hão de figurar pessoas das mais conspicuas da ilha, anda já talvez nesta hora a percorrel-a toda, de povoação em povoação; e de porta em porta, mendigando ao som da sua música instrumental, com que se edifique o suspirando solar das lettras e artes, naquella boa terra, que já hoje pelos seus esforços para uma instrucção séria, póde envergonhar muitas outras, e esta nossa tambem!" (loc.cit)

O impulso principal dessa movimentação musical para fins educativos deu-se com a concessão governamental à Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes, em S. Miguel, de um terreno e ruinas adjacentes, para ela poder edificar um vasto pavilhão destinado a reuniões, a aulas gratuitas e à instalação de uma biblioteca e de um pequeno museu:

"A Sociedade confiada em que todo o povo d'aquella grande Ilha, já por beneficios a conhece, e a tem na devida conta, e folgaria de coadjuval-a para interesses tão grandes e tão geraes, determinou correr a cidade de Ponta Delgada processionalmente com a sua bandeira e o seu instrumental adiante, provocar e receber esmolas, em dinheiro, em generos, ou em promessas de dias ou meios dias de trabalho, para a sua amada e amantissima edificação; e, percorrida a cidade, deputar do seu gremio socios dos mais conspicuos para se irem peregrinando todas as desoito leguas da ilha, de aldeia em aldeia, de povoa em povoa, de casalejo em casalejo, cantando, pedindo, e agradecendo ao som de instrumentos, as esmolas; estas esmolas, as mais fecundas de quantas jámais se haverão dado." (loc.cit. Advertência ao Cantico da Caridade)

Os ideais de ensino de A. F. de Castilho tinham fins pragmáticos de formação e de amparo das camadas menos favorecidas. A música deveria servir sobretudo como um meio poderoso para atingir esses objetivos. Para isso, os textos deveriam ser relacionados com assuntos que contribuissem para o aumento do bem-estar social, tanto do ponto de vista material quanto espiritual. No âmbito desse credo progressista, assuntos líricos pareciam de menor significação. Não o individualismo da paixão pessoal, mas o altruísmo do amor ao Homem deveria estar em primeiro lugar:

"Sobre todos os pontos de alta e baixa politica se póde disputar, e se disputa e se guerreia; mas, quanto á necessidade urgente de allumiar e moralisar as turbas, ainda não ouvi levantar-se contra uma voz unica. Defenda-me Deus de pedir, a gente moça, que não cante os seus amores; bem velha é a natureza e mas ainda se não esqueceu um só anno de enflorar, perfumar, e cantar amores na primavera. Continuem nas boas horas a repartir dos reflexos dos seus prazeres e magoas com aquelles que, assim como nós, se recreiam com as toadas d'esses cantares, como sympathisamos com as elegias do rouxinol, e com os mysterios enfeitiçados da lua cheia. Mas, o amor, que na vida feminil, como disse a grande escriptora contemporanea, é a historia toda, não pode ser na dos homens senão um episodio; o que não desdiria a Sapho, não sei se ficava egualmente bem a Anachreonte. O que era graça em Mad. Deshoullières, já hoje parece, quando menos, desperdicio e futilidade em Lafard e Chaulieu. A nossa edade é uma edade séria, laboriosa, altamente emprehendedora, mais nobremente ambiciosa que as outras, e mais que outra nenhuma insaciavel. As sciencias acceitavam palavras, e discursos os outros seculos; este exige-lhes que sejam creadoras. A' industria ordena que aproxime e fraternise a familia humana; que derrame ás mãos cheias alguma coisa como os regalos das côrtes, pelas aldeias e pelos casaes das serras. A lyra póde ainda resoar nos festins, como o operario sisudo, e o veterano farto de guerras, se misturam, bem-vindos, com as danças aldeãs na relva do adro pelas tardes dos domingos. Mas esses são os ocios da lyra; o seu officio, a sua missão, o seu destino, é como o de tudo quanto Deus creou ou permittiu ao homem que inventasse: contribuir para bens mais solidos e duradoiros. Andamos n'uma conquista do maior empenho, e para ella tudo são armas; a lyra é uma arma tambem, não já cruenta, como nas mãos do Armodio, e de Tirtheu, porém mais forte cem vezes. O mais expressivo cantico de namorados poderá não sobreviver ao seu auctor; poderá até o seu auctor quando o reler lá ao diante, ao fundo do declivio da edade, á orla do cyprestal, não o entender se não confusamente, e deixal-o descair de entre os dedos esquecidos, como rosa murcha; mas quando o canto saiu inspirado por mais altos amores, por um affecto que não vae dirigido a uma só mulher, e ás vezes imaginaria, mas a todas as mulheres e a todos os homens conjunctamente, á infancia e á velhice, como á adolescencia e á mocidade; ás gerações por vir como ás contemporaneas; quando se prosegue com engenho, purificado ao fogo santo de uma benevolencia universal, a obra incetada pelo Homem Divino, então ainda que o mundo todo fosse ingrato, já no trabalho ia colhida a recompensa; quando os epigrammas dos ociosos murmurassem, a consciencia a cantar dentro não os deixaria ouvir; e as bençãos dos affligidos, que, naquelles versos, mensageiros de bons conselhos, e prophetas de eras novas, se sentiriam amados por um amigo, por um irmão desconhecido, antecipariam ao humilde poeta um ceo em cada sonhos." (loc.cit.)

Na véspera de Natal de 1852, A. F. de Castilho expôs detalhadamente o histórico do movimento açoriano, - que se espalhava como uma 'revolução humanitária' em Portugal -, no texto que serviu de prefácio das Estreias Poético-Musicaes para o Anno LIII.:

"O anno que ora finda, abriu uma alvorada altamente promettedora á instruccão e civilisação de Portugal; lançou no entendimento e consciencia de muito povo, e de muitos poderosos, a idéa, e o desejo, e o empenho, de se diffundir por todos, luz, moralidade, contentamento.
A PROVIDENCIA que, pelo commum, dá nascerem de principios minimos as coisas maximas, Quiz, que o primeiro impulso para esta pacifica e pacificadora revolução, n'esta ainda grande, e tão espalhada monarchia, partisse de um ponto apenas lembrado n'um extremo d'ella; de uma ilha africana, de San Miguel. N'essa terra de natureza dadivosa, onde os homens, favorecidos pelo torrão, e pelo clima, poderiam, como os de Otaiti, dormitar a vida ao som das vagas, e á sombra das suas bananeiras, e dos seus laranjaes, levantou-se, ao lado de uma ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DA AGRICULTURA, outra associação empenhada no progresso das LETTRAS e das ARTES; uma e outra, animadas na pratica do espirito do christianismo, pozeram peito a contrastar a descuriosa inercia dos habitantes, fructo das grandes, antigas, e mal repartidas opulencias, e de antigos, e injustos desamores da metropole tambem. Começou-se a escrever para os lavradores; entraram-se a fazer exposições, dos fructos da terra, por uma parte; dos productos da industria, por outra; a concitar-se os animos, pela emulação para as idéas uteis e generosas; abriram-se escolas gratuitas, a brilharem, todas as noites, na cidade, pelas villas, até pelos montes mais desconversaveis. N'essas escolas, povoadas de creanças, de mancebos robustos, e de velhos, mestres mais amigos de sua consciencia que da fama, ensinam ao longo do anno, e dos annos, o ler, e o escrever, com uma abnegação, com um zelo, com uma facilidade, com um contentamento mutuo, talvez sem exemplo antes d'elles; e pela unica recompensa de aspirarem muita gratidão, de ajudarem a patria, que os não conhece, de deixarem a seus filhos uma herança de bons exemplos, e de se partirem um dia todos esperançosos para o mundo dos premios largos, e mui certos. N'estes ninhos de luz por entre as duplicadas trevas da noite e da ignorancia, lá vão elles mansamente distribuindo, com as lettras, os principios da crença, as orações que a alimentam, as noções da natureza, que a fortalecem e encaminham; o amor do trabalho, o gosto das artes, o senso e as aspirações do bello. Por entre essas escolas, outras, em casas tambem de esmola, com bancos, com livros, com papeis tambem gratuitos, com illuminação tambem dada, com mestres não menos officiosos e incansaveis, alegram os serões, sanctificam ainda melhor, pela supressão de vicios grosseiros, os dias de festa, armonisam e fecundam os invernos, com o ensino e pratica da musica, para que a triste da plebe possa entrar, um dia e cedo, na communhão da arte, no goso dos prazeres delicados.
Mais exemplos: estes mesmos homens, que assim nos romperam a estrada, e que tão adiante de nós nos vão mudamente chamando para as empresas serias, não se contentaram com a sua caridade temporaria e fortuita; quizeram que lançasse raizes no solo, que se perpetuasse; quizeram que uma edificação nova e magnifica, feita para todos, á custa de todos, ficasse ali com aulas permanentes, com officinas, com gymnasio, com bibliotheca, atrahindo os pobres para a instrucção, recordando aos ricos a benificencia, aos instruidos os prazeres do ensinar; e pelos agrados materiaes renovando de geração em geração o desejo das obras de misericordia bem cumpridas. E o Governo ouviu e amou o proposito daquelles homens, e doou-lhes o chão para a sua obra nacional; e as esmolas, inda antes de pedidas, começaram a afluir; e dentro em pouco ali, n'uma cerca de antigas religiosas, com as ruinas de uma egreja velha, pompearão uns nobres passos da civilisação, mui risonhos de verdura, mui visitados do sol, e de amores, mui alegres, por amenidade de methodos, e doçura de mestres; mui convidativos por cantares e musicas; mui abençoados por mães; mui festejados por filhos; mui invejados pelos velhos; e mui encommendados a DEUS pelos parochos, que verão n'aquelle seminario um auxiliar efficacissimo da egreja.
D'estes exemplos, sem ostentação apresentados pela ilha de San Miguel, mas já ao longe conhecidos pela fama, saiu pois o tráfego, que já vai por este reino, de escolas nocturnas e gratuitas de ler e escrever.
E que tráfego! Os primeiros seis mezes d'este anno ainda não tinham uma; e ainda o anno não é despedido, quando já na capital, e pelas provincias, se contam cincoenta; algumas populosissimas; umas de meninas; outras de meninos; futuras mães, e futuros paes de familias; estas, e tantas, de soldados; aquellas, de rusticos; est'outras de artifices, e dentre em pouco (por que os dons da PROVIDENCIA não param nem exceptuam) ver-se-hão tambem nas cadeias; talvez até nos hospitaes; cumprindo-se assim, em cada uma dessas tristes poisadas, duas das mais formosas obras de misericordia ao mesmo tempo.
E que delicia não é para a alma contemplar, como o povo, esta grande creança, tão interessante, e que tanto pode vir a ser, se lhe derem, e do modo devido, a creação e ensino, que DEUS manda, acorre todo ávido a fartar sedes de saber, apenas se lhe abre um d'estes mananciaes! Como trocam os passatempos ruins e perigosos, e até parte do seu descanso, por estes expectaculosinhos, em que o proveito lhe vai desfarçado no folgar; para onde entram cantando, e d'onde saem dando graças!
Em quanto o povo assim provê, por instincto, ao seu proprio interesse, e a classe media, a expensas do seu haver, e do seu tempo, o trata como a irmão mais novo, a quem é dever educar e instruir, o Throno, e os Poderosos, cumprem tambem, com alacridade verdadeiramente edificativa, o seu encargo de vice-Providencia. Os chefes administrativos, e os prelados, os governadores militares das provincias, os commandantes dos corpos, porfiam, com briosa competencia, a qual dará mais amparo a estes ensinos tornados moda. Os ministros da coroa, depois de honrarem com a sua presença, e com os seus applausos, provas publicas e solemnes, da eficacia dos novos methodos, durante uma demonstração de cinco horas, os ministros da coroa, intelligencias das mais distinctas e cultivadas, declaram, por termos não equivocos, a sua sympathia para com a revolução humanitaria que se opera; e para logo começam a prestar-lhe o seu amparo." (op.cit. XIss.)

A dedicatória da obra à rainha D. Maria II reflete o significado que A. F. de Castilho emprestava ao caráter construtivo de seus intuitos educativos no âmbito dos esforços da autoridade constituída, o seu culto à memória de D.Pedro como herói de ideais 'civilizadores' e à importância da função modelar da soberana como primeira educadora do país:

"Entrava eu na adolescencia, quando do mundo se partiu Bemaventurança, como piamente o cremos, a Augusta Bisavó de VOSSA MAGESTADE FIDELISSIMA. O primeiro canto que me ouviram, foi de lagrimas sobre o seu tumulo.
Encetava eu apenas a edade da força, quando foi acclamado o Augusto Avô de VOSSA MAGESTADE; e o meu segundo canto publico, foi uma saudação festival que achou graça na sua Real Presença.
Quando o excelso Pai de VOSSA MAGESTADE, depois de nos ter redimido, libertado e entregue, como filhos ao coração da SUA FILHA, despio as armas e poisou pela primeira vez a grande cabeça, e se foi ao Ceo; fui eu d'entre os nossos escriptores, o que primeiro espargio sobre o seu sepulchro saudades e folhas de loiro que todo um reino regou de pranto.
[...]
Hoje, é á BISNETA daquella Santa Rainha, e á NETA D'AQUELLE SOBERANO piedosissimo, á FILHA do abdicador de duas corôas e fundador de duas liberdades, á HERDEIRA do seu espirito, á continuadora da sua obra, que a minha pobre musa vem tributar devota os seus cantos, por ventura derradeiros.
Não é, SENHORA, pelo ter eu em grande conta como poesia, que me affoito a pol-os aos pés de VOSSA MAGESTADE, é só porque, inspirados por um entranhado amor da patria e do genero humano, por uma fé viva na PROVIDENCIA e no futuro; nascidos do coração; e endereçados, como todas as minhas fadigas já de annos, ao melhoramento intellectual e moral da puericia e da adolescencia, que são a nação futura; estes versos, já pelas suas aspirações mais altas que poderão dispertar em melhores talentos, entendo que não desmerecem o favor de uma GRANDE RAINHA, que é, ao mesmo tempo, uma grande MÃE e uma grande Educadora.

 
"Le premier acte de dom Miguel (...) fut d'abolir la Constitution. (...) Presque tout le pays tomba rapidement en son pouvoir, et il n'y eut bientôt plus que l'île de Terceira, dans les Açoreds, qui fût encore fidèle à la reine Maria (...) Le 23 septembre 1833, la reine Maria avait fait son entrée dans Lisbonne (...). Dom Pedro rétablit alors la Constitution de 1826 (...). La reine Maria, qui avait été déclarée majeure, se maria en 1835 au duc Auguste de Leuchtenberg, et, après la mort de celui-ci, en 1836, au prince Ferdinand de Saxe-Cobourg et Gotha"

Alcide Ebray, "La politique contemporaine", Le Portugal, op.cit. 242

Essas raras virtudes, que o Ceo já começou a premiar em VOSSA MAGESTADE FIDELISSIMA, quando a cercou da prole mais admiravelmente esperançosa, galardão egual ao que já déra ao sempre chorado PAE DE VOSSA MAGESTADE; essas virtudes, de boa Educadora, e de boa Mãe; MÃE EDUCADORA, como que providencialmente posta n'um throno, para modelo e incentivo a todo um povo, essas virtudes que a purpura não encobre, mas que tambem não realça; foram, e nenhuma consideração de lisonja, as que me fizeram sollicitar, como boa estreia para as estreias do novo anno, a honra de lhes pôr na frente o glorioso nome de VOSSA MAGESTADE FIDELISSIMA, a quem Deus para bem deste seu reino, conserve e proteja por largos e felizes annos." (op.cit. VII-IX)

"SUA MAGESTADE FIDELISSIMA emfim (é um facto que me ufano de registar aqui para a historia, para incitamento a principes, e povos, e redubramento sobre tudo á publica gratidão), A HERDEIRA da grande alma civilisadora de D. Pedro Unico, vai uma e mais vezes, sentar-se n'um humilde banco, entre as pobresas de uma sala de asylo de infancia desvalida, para assistir por decurso de horas, como boa mãe, entre filhas muito amigas, a este ensino, que a alegra com a alegria d'aquelles rostinhos, todos contentes, que a interessa, porque o MODELO de Rainhas é tambem MODELO de Educadoras; e lhe obtem mostras generosas de aprovação, porque n'aquelle centro de amigas, a quem distribue animações e afagos, está prevendo, com o seu profundo espirito, futuras esposas e futuras mães segundo o seu coração, e segundo a patria as necessita.
O anno de 1852 deixa portanto ao que lhe vem herdeiro, os melhores auspicios no tocante ao arroteamento intelectual do povo.
Foi por isso que me pareceu poderia ser-me permittido lançar aos pés do Throno, que DEUS proteja e abençôe, como boas estreias para o novo anno, este ramalhetinho poetico; não de flores opulentas e peregrinas, mas de flores fructiferas, e da terra, ainda que pobres.
Perante os olhos serios e meditativos da PRINCEZA, que preside aos destinos d'este povo, bem compenetrada da importancia da sua missão, bem dedicada e bem varonil para a preencher, tenho por de fé, que valeria menos o mais brilhante poema do maior engenho, donde não podesse exprimir-se algum proveito real, do que estas poucas e singelas paginas, a exhalarem algum espirito de religiosidade para o meio da frieza de uma grande descrença, a soltarem algumas vozes de caridade, através do susurro vasto e profundo dos egoismos, alguns reflexos de profecias amoraveis, para a desanimação em que deixaram os animos, os trinta annos tumultuarios, e incriveis, que atravessámos." (op.cit. XVI-XVII)

A arte do músico teria para A. F. de Castilho um fim ético; o objetivo primordial deveria ser o de servir desinteressadamente à educação do povo:

"Os gigantes da moderna litteratura, fizeram aos deuses, o que os deuses da mythologia haviam feito aos gigantes do mundo velho; fulminaram-nos, lançaram-lhes montanhas por cima, para que nunca mais se levantassem; entretanto, no fundo essencial, as letras pagãs, e as letras christãs, quasi que não offerecem outra differença appreciavel. Com poucas excepções lá, e com poucas excepções cá, a lyra e a harpa, só se afinam para os prazeres egoistas, para as penas egoistas, para a vaidade do brilhar, ou para a lisonja. Lá o vate, cá o bardo, era, e é, directa, ou indirectamente o heroe do seu proprio canto. Visitando o campo das batalhas,saudando ou insultando as magnificencias das côrtes, ou contemplando as ruinas do passado, nem o bardo, nem o poeta, se importam com o que essas coisas podem ter de commum com a ventura, ou desventura do genero humano. [...]
Invocai a Musa ou o Anjo; tomai a lyra, ou o alaúde; não é essa a questão; mas, primeiro que solteis a voz, meditai, e inqueri comvosco mesmo que males não fataes, não irremediaveis, contristam este povo? Quaes serão desses males as origens, que elle proprio, allumiado e dirigido convenientemente, pode supprimir ou atenuar? Como se lhe encaminhara o entendimento a conhecel-as, e a vontade a marchar de vagar, e sem tumulto contra ellas? 13 Então averiguado que a maior, e peor parte dos males do povo, provém da immoralidade, da preguiça, e da ignorancia, da carencia de senso religioso intimo, do intorpecimento da intelligencia, pela falta de uso de discorrer, da ausencia, quasi absoluta, dos principios dos deveres e dos direitos, de uma cegueira profunda sobre a natureza, sobre o que mantem ou destroe a saude; sobre o que augmenta ou dissipa os haveres; sobre o que multiplica ou atenua as forças; sobre o que attrahe ou repulsa as vontades; e em fim de estar privado até dos lenitivos, que um pouco de trato das artes bellas, muitas vezes podéra dar ás suas dores, e mesmo á grosseria dos seus vicios; convencidos intimamente de todas estas verdades, tristes, mas proveitosas, cantareis, mas diversamente do que até agora; e cantareis só nos interval-os do trabalhar positivo no sentido da illustração, e da moralisação do vosso povo; estudareis, para serdes seus mestres, em alguma das mil e uma coisas que elle ignora, e necessita aprender. Essas coisas ensinar-lhas-heis com paciencia, com suavidade, com unção; guial-o-heis, como que pela mão, para as coisas novas que tem de fazer; e só quando vos sentardes para repousar, lhe fareis ouvir o canto, que será ainda um ensinamento." (op.cit. XVII-XXI)

Digno de nota é a importância dada à Alemanha por A. F. de Castilho, considerada como país-modêlo de uma educação musical com objetivos práticos e socializantes:

"A musa da Alemanha, musa Cherubim, vos inspirará, como aos filhos daquella terra feracissima de tudo quando é grande, cantares faceis, regalados, deliciosos; para todos os trabalhos do campo, e da cidade; para as diversas quadras do anno, e da vida; para todas as situações da boa e má fortuna; cantos perfumados de naturesa; cantos confidentes da Providencia; bafejados de esperança; repassados de gratidão, de indulgencia, de conformidade, e de amor, e de amores para com todos, e para com tudo. Por vós o operario temperará, cantando, as suas fadigas. A mãe não sentirá mais ternura; mas expressa-la-ha melhor, e mais delicadamente, embalando, com o anjo da guarda, o berço do seu menino. Os presos, repetindo as vossas strophes, que lá foram procura-los de proposito das suas grades a dentro, quando os indifferentes passavam sem as olhar, talvez aprendam, por vós, que ainda tem coração, e comecem a envergonhar-se dos seus passatempos brutaes, das suas conversacões ferozes, e immundas. As fiandeiras, ao serão do inverno, os pescadores no ocio do areal por uma tarde de tormenta, dever-vos-hão alguma coisa melhor para passatempo, que a murmuração, e os doestos. Cada orphandade, cada viuvez, terá a sua gota de balsamo poetico; cada banquete o seu postre intellectual; cada festa religiosa o seu realce; as danças plebéas; os folgares das vindimas, das ceifas, e das esfolhadas; as marchas das tropas, ao longo das estradas aborridas, tudo haverá assumido um cunho de sociabilidade, de bondade, e de agrado, de que vós, só vós, meus poetas de eleição, meus percursores de eras novas, e mais polidas, havereis sido, sem custo, e com prazer, os dispenseiros." (op.cit. XXI-XXII)

A.F. de Castilho, que via o ano de 1852 como de extraordinária importância no movimento de renovação da instrução pública, esperava receber do Govêrno apoio para o que ele considerava como uma verdadeira revolução:

"A metade ultima do anno que nos foge, diziamos nós, e sabem-no todos, trouxe a este paiz um fervor de estudo, sem exemplo entre nós, nem talvez em parte alguma. Os cantos que offereço, nasceram no meio desse alegre movimento; pertencem-lhe todos. São parentes, são inseparaveis d'estas idéas novas de possibilidade, de facilidade, de se instruir e melhorar o povo. Saem da sua originaria obscuridade, e sobem á consideração dos grandes, não para lhes ensinar o que elles melhor sabem do que nós, não para lhes pedir o que elles desejam tanto como nós, mas só para despertadores, que nas horas do descanço e folgar, lhes recordem, que d'entre os tantos e tão momentosos negocios que os vão disvelar, nenhum ha maior, nem mais urgente, nem por ventura mais singello e exequivel, que o da instrucção publica.
Vai o novo anno abrir-nos o novo parlamento. Possam os representantes do povo, que todos presenciaram, e muitos dos quaes serviram e ajudaram com obras esta revolução abençoada, cuja bandeira é luz, cujo brado é amor, cujos resultados serão patria, e ceo; possam elles, afortunados legisladores, organisal-a emfim, coadjuvar e completar o civilisador empenho dos ministros da corôa, e (ouso dizel-o) da corôa mesmo.
Facillimo é, e altamente glorioso, o muito que d'elles experamos n'esta parte.
Carecemos de um systema, combinado, completo, de instrucção, em harmonia com as verdadeiras e reconhecidas necessidades do povo portuguez no seu estado actual, e philosophicamente calculado tambem, para as subsequentes phases provaveis da sua civilisação. Carecemos de notaveis aperfeiçoamentos, de notaveis addições, e de notaveis decotes, na instrucção superior e scientifica; na instrucção primaria porém, tanto na official, como na particular e de especulação, carecemos de uma transformação, de uma renovação absoluta; de uma diffusão illimitada, de bons mestres, de bons methodos, de bons livros, e optimos fiscaes sobre tudo.
[...] Emfim, as artes, que hoje chamamos de luxo, e que nem todas o são, a musica, os passatempos scenicos, a dança, a poesia, e a pintura; exclusivo até agora das cidades, e ainda nas cidades privilegio só de poucos, serão, como as flores na primavera, como o sol todos os dias, como as estrellas todas as noites, patrimonio de toda a gente; e o habito de uma vida mais folgada e mais suave, trará com o tempo muito adoçamento aos costumes, muita benevolencia nova aos corações." (op.cit. XXIII-XXV)
Os doze cânticos da coleção de A. F. de Castilho foram postos em música, na sua maioria, por Francisco Norberto dos Santos Pinto (Hymno da Caridade, Graças ao Levantar da Escola, Hymno para a Distribuição dos Premios, Cantico da Noite, Cantico da Manhã, Cantico das Flores Novas, Cantico da Fructa, Cantico da Meza). Moraes Pereira compôs a música para o Hymno do Trabalho; J. Jacintho Tavares a melodia da Invocação a Deus (antes de começar o estudo) e Casimiro Júnior a do Cantico dos Lavradores. A obra termina com um Vale Funebre para o enterro de confrades da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes em S. Miguel.

Desses cânticos, aquele que maior popularidade alcançou foi o Hymno do Trabalho:

"É incrivel a rapidez com que este hymno se propagou na ilha de San Miguel até no fundo da classe menos literaria e menos cantante. Em poucas semanas, depois que se estreou na primeira exposição industrial da Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes, cantavam n'o os operarios nas officinas, os rusticos na lavoira, os descalços pelas ruas, as senhoras nas suas casas de lavor e nas suas salas; cantavam-n'o os barqueiros e pescadores, cantavam-no os soldados; cantavam-n'o os prezos, todos cantavam.
A belleza da musica, era a unica explicação deste fenomeno, tinha dado fortuna á poesia.
Depois que em Portugal se abriram escolas de leitura pelo novo methodo, d'ellas se diffundiu com egual generalidade este cantar, a que eu já quero muito bem, por ter mostrado a experiencia, que ha realmente nelle certa virtude, que, ao menos em quanto elle soa, e na meia hora que apoz vem, concita os braços e as vontades para o trabalho. Nesse sentido atrevo-me a recommenda-lo aos donos de fabricas e officinas e ás mães de familias como um bom afugentador de somnolencias nos serões do inverno." (op.cit. 45-46)

 

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