Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria
científica
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N° 13 (1991: 5)
Ideal da música como "linguagem da humanidade" e o Brasil
Antonio Alexandre Bispo
Na bibliografia sobre o Classicismo encontra-se a noção de que um "universalismo" na mais alta acepção da palavra deve ser procurado ao nível extra-acústico de um ideal da música como "linguagem da Humanidade". (Cf. Rudolf Flotzinger, "Zum Topos von der Völker und Stände verbindenden Wirkung der Musik", in International Review of the Aesthetics and Sociology of Music 12/2, 1981, 91-101, 100)
Segundo alguns autores,não seria até mesmo justo afirmar-se, como constantemente o fazem etnomusicológos, que a Musicologia seria excessivamente eurocêntrica, pois "ela também consideraria elementos universais imanentes, que não seriam propriedade particular da cultura do homem europeu, pois dele se teriam emancipado e teriam sido assimilados por outros povos em todos os cantos da Terra... Isto diria respeito a certos elementos essenciais do Iluminismo e do Humanismo que, desenvolvidos no Ocidente na Flauta Mágica e na Nona Sinfonia, seriam em sí imanentemente universais e tornar-se-iam posteriormente universais de fato." (Walter Wiora, "Europäische Zusammenhänge als musikgeschichtliches Problem", in Musicae Scientiae Collectanea: Festschrift Karl Gustav Fellerer zum 70. Geburtstag, ed. H. Hüschen, Köln 1973, 686-696, 690)
Esse "Universal imanente" não diz respeito a aspectos técnico-estilísticos, mas ao Ético, ou seja, cai num terreno no qual a relatividade a ser sempre guardada na consideração científico-cultural encontra limites. Esses limites dizem respeito não ao estudo científico do comportamento ético em diferentes culturas, mas sim à sua aceitação e defesa pragmática com base em resultados "científicos". Seria o caso de etnólogos que relativassem, por exemplo, os Direitos do Homem.
Essa possibilidade de suspensão da relatividade dos fenômenos
culturais no campo ético leva a reflexão ao relacionamento entre
a Estética e o Ethos, questão também frequentemente discutida
na bibliografia dedicada ao Classicismo. O musicólogo Heinrich
Besseler, nas suas observações sobre o artigo "Sobre as representações
de caráter na música de Christian Gottfried Körner", publicado
na revista de Schiller, Die Horen, em 1795, diz:
"A Unidade é julgada pelo autor como a lei fundamental de toda
a arte clássica. Quando ele, além do mais, introduz o conceito
de caráter, isto significa uma intensificação do princípio. Caráter
é a força unificante dentro da pessoa, é o seu ethos... No uso
da linguagem de Weimar, a Unidade não é apenas uma exigência técnica
da obra de arte...". (Heinrich Besseler, "Mozart und die Deutsche
Klassik", in Kongreßbericht Mozartjahr 1956, Graz-Köln 1958, 47-54;
republicado em Heinrich Besseler: Aufsätze zur Musikästhetik und
Musikgeschichte, ed. P. Gülke, Leipzig 1978, 442-454, 447)
Através da unidade do Estético com o Ético no Classicismo, H. Besseler estabelece o relacionamento da Criação com o Homem, fato que teria sido fundamental para os Clássicos: "deve-se afirmar, ao mesmo tempo, que o valor dessas criações não residia no Pessoal-Subjetivo, mas na Ordem (...) objetiva." (ibidem 454. Veja neste contexto a carta de Kant dirigida a Johann Friedrich Reichardt am 15 de outubro de 1970, cit. em Hermann Güttler, "Kant und sein musikalischer Umkreis", in Beethoven-Zentenarfeier - Internationaler Musikhistorischer Kongreß, Viena 26 a 31 de março de 1927, Viena 1927, 217-221)
A reflexão sobre o Classicismo leva portanto a conceitos que podem dar impulsos a uma nova fase criadora em época que sob alguns aspectos parece denotar um nacionalismo musical fenecente e um mal-estar não superado na assimilação de técnicas e conceitos de centros internacionais; não a consideração da música folclórica e popular na composição erudita ou o uso de processos construtivos segundo modelos de renomados compositores do estrangeiro, mas a procura da unidade íntima do Ethos dentro da cultura historicamente constituída. Não se trataria aquí, portanto, de uma tendência "neo-classicista" no sentido superficial do termo. A investigação musicológica, realizada dentro de uma ampla visão histórico-cultural, forneceria subsídios à composição. Segundo esse modelo de pensamento, a criação musical não mais se orientaria no sentido estético da formação de um estilo nacional ou de produção de obras segundo critérios internacionais a serem divulgados e empregados, ambos denotativos de uma consciência de especial missão artística por parte do criador, mas sim no sentido ético de superação de um hiato que interrompeu a continuidade do desenvolvimento musical próprio do país.
A maior dificuldade reside aquí na associação do "ideal imanente" à música do Pré-Classicismo e do Classicismo com um Humanismo livre-pensador, o que prejudica a revalorização da música sacra da época e que constitui grande parte do repertório. Sobretudo na bibliografia sacro-musical fizeram-se ouvir de há muito opiniões de repulsa à no caso inaceitável possibilidade de redução das considerações do Ser exclusivamente ao nível existencial: "Como o Homem não pode existir sem vínculos, a Época das Originalidades encontrou o vínculo no puramente Espiritual e no puramente Humano. A música tornou-se célula de força moral, de caráter, ética, concepção do mundo, sim, ideologia por excelência." (Eberhard Preussner, "Das Abendländische in der Musik", in E. Preussner, op.cit. 196-214, 207)
Procurou-se demonstrar que na passagem do Barroco para o Classicismo, o espírito europeu vivenciou uma transformação estrutural: "O que havia sido mantido até o Iluminismo pela religião cristã, ou seja, o vínculo Homem-Mundo, foi desintegrado em incurável dualismo." (Jan Gebser, "Strukturwandel europäischen Geistes", in Vorträge und Programm des VIII. Arbeitstagung, Lindau 1955, Institut für Neue Musik und Musikerziehung, 47-56, 48)
Nas críticas deste teor, todo um período é visto sob o prisma de uma contínua secularização: "Foi a época na qual a Estética, como a doutrina filosófica do Belo, emancipou-se do grande contexto metafísico da determinação transcendental do Ser, emancipou-se e tornou-se disciplina filosófica autônoma". (Rudolf Graber, "Religion und Kunst", in Musica Sacra und Liturgiereform nach dem II. Vatikanischen Konzil, V. Internationaler Kongreß für Kirchenmusik, - 21 a 28 de agosto de 1966 em Chicago-Milwaukee -, ed. J. Overath, Regensburg 1968, 46-65, 48)
Esse julgamento de toda uma época parece porém resultar de uma visão "a posteriori" e ser válida sobretudo para a Europa Central. No Sul da Europa e sobretudo no mundo católico fora do continente europeu, a época permaneceu profundamente enraizada numa visão do mundo integral, que unia em sí o Sagrado e o Profano. Mesmo se em determinados círculos da intelectualidade, sob a influência de idéias francesas, alastraram-se conceitos radicais, em geral manteve-se viva até meados do século XIX uma das principais características do Classicismo: a procura do meio termo, da justa medida. (Karl Gustav Fellerer, "Zur Musikrezeption im frühen 19. Jahrhundert", in Festschrift für Arno Volk, ed. C. Dahlhaus e H. Oesch, Köln 1974, 91-101, 94.
Da possibilidade de uma harmonização de aspirações ao "Imanente Universal" do Ético e da orientação ao Transcendente fala por sí o grande patrimônio sacro-musical legado pelo passado. Tais reflexões sobre a vinculação do Estético e do Ético que se colocam na consideração do Classicismo parecem corresponder além do mais a exigências e necessidades atuais, (Hellmuth Christian Wolff, "Die ethischen Aufgaben der neuen Musik", Kongressbericht, Internationale Gesellschaft für Musikwissenschaft, 4. Kongreß, - Basiléia, de 29 de junho a 3 de julho de 1949 -, Basileia 1949, 221-226, 221) mesmo no campo da música sacra. Se a música sacra tem "um objetivo ético", implícito nas expressões "gloria Dei" e "aedificatio hominum" e sendo ela "ligada a uma música de conteúdo religioso incontestável e de certo nível artístico", (Otto Ursprung, "Die ästhetischen Kategorien Weltlich-Allgemein-Geistlich-Kirchlich und ihr musikalischer Stil", in Zeitschrift für Musikwissenschaft 17/11, 1935, 433-456, 442) então exige-se do músico criador, particularmente em países de cultura ocidental fora dos limites geográficos da Europa, que ele se coloque a serviço de uma atitude que somente pode ser chamada de "ética". (Antoine E. Cherbuliez, "Möglichkeiten und Auswirkungen des Ethos in der Musik", Internationaler Musikkongreß - Viena 1952-, Viena 1953; Separata: Musikerziehung 46-50, 50)
Essa exigência parece até mesmo ser necessária perante a situação sócio-cultural de muitos países e parece também corresponder a determinadas correntes do pensamento teológico da atualidade. Só que a necessária consideração do Ético na cultura musical não pode ser efetuada à luz de sistemas de idéias erigidos artificialmente, mas sim cientificamente com base em fatos historicamente comprovados e na sondagem do Ethos imanente a tradições de cunho religioso. Nesse intuito torna-se necessário reconsiderar a música sacra da época do Classicismo em países como o Brasil, escrita por compositores locais segundo as possibilidades locais e que, permanecendo por décadas em uso, tornou-se "clássica" segundo outra acepção do termo.