Timbre Correspondencia Euro-Brasileira

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N° 11 (1991: 3)


 

RELAÇÕES DE ALAGOAS COM A HISTÓRIA DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO DA BAHIA

- Da necessária superação da "Escola de Nina Rodrigues"-

Antonio Alexandre Bispo

(Excertos)

 

Quanto ao polo irradiador de influências intelectuais representado pela Bahia, deve-se mencionar a escola antropológico-patológica fundada pelo médico-legal e criminalista maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), um autor que, após ensaios sobre temas como "Imunidades mórbidas das raças brasileiras" e "Variações étnicas de imputabilidade penal" dedicou-se ao "problema do negro no Brasil" (Os africanos no Brasil, São Paulo/Brasília 1982, 6a. ed., Introdução).

Preocupando-se com a higiene social (!), R. Nina Rodrigues partia da convicção da existência de um "critério científico da inferioridade da raça negra", uma inferioridade que nada mais seria do que "um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade". (op.cit., 5).

R. Nina Rodrigues foi um autor que afirmou:

"A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exagêros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo." (op.cit. 7)

A essa convicção racista de Nina Rodrigues unia-se uma tendência lusofilista:

"Há flagrante injustiça no zelo de que pomos em defender os foros da nossa linhagem. Desabrida a intolerância para com os portugueses. Não há quem não se julga autorizado a depreciá-los, a deprimí-los. Como que pesa e envergonha o sangue português que nos corre nas veias e a cada passo (...) clamamos a altos brados que a nossa decadência provém da incapacidade cultural dos lusitanos, da baixa estirpe dos degradados, galés e prostitutas mandados a colonizar o país. E ninguém aí descobre todavia uma parte de ofensa pessoal que lhe possa caber. / Diversa é a situação se, de público, se tem de tratar do indígena, do negro ou do mestiço. A inconveniência, as suscetibilidades pessoais são para logo invocadas como irritantes mordaças. Refolha-se a linguagem, mitigam-se os conceitos, é instintiva a tendência a exagerar a benevolência dos juízos; nem basta calar a verdade, urge fantasiar dotes, exaltar qualidades mesmo comuns ou medíocres. (op.cit.2) Depois tocou a vez ao negro. (...) O sentimento nobilíssimo de simpatia e piedade, ampliado nas proporções de uma avalanche enorme na sugestão coletiva de todo um povo, ao negro havia conferido, ex autoritate propria, qualidades, sentimentos, dotes morais ou idéias que ele não tinha, que ele não podia ter; e naquela emergência não havia que apelar de tal sentença, pois a exaltação sentimental não dava tempo nem calma para reflexões e raciocínios." (op.cit. 3).

Nina Rodrigues distancia-se portanto de toda a população na qual, segundo as suas palavras, correria o "sangue português nas veias" e que, pouco interessada com a própria ascendência biológica, via os africanos e seus descendentes da forma mais positiva.

As palavras de Nina Rodrigues honram a população brasileira e desmerecem o seu autor.

O pseudo-lusitanismo que Nina Rodrigues representa (cf. O problema da raça negra na América portuguesa, Bahia, 1905) é, por assim dizer, contrário ao verdadeiro lusitanismo que caracterizou a história de uma política de miscigenação já defendida oficialmente por Portugal no início do século XVI. Trata-se, na verdade, não de um lusitanismo, mas sim de um racismo convicto da superioridade da raça branca recebido através de correntes francesas e centro-européias.

A "Antropologia" desse médico-legal deve ser certamente vista dentro de sua época; esse relativamento na sua crítica não impede, porém, que se a considere como uma das mais lamentáveis aberrações do pensamento no mundo de língua portuguesa. Malgrado possíveis aspectos positivos de suas pesquisas, obras desse tipo já teriam sido há muito relegadas ao esquecimento ou ao desprêzo em nações que já fizeram a experiência do racismo, tal como a Alemanha.

É causa de estranheza que essa "Antropologia" tenha sido vista não com justa indignação, mas com acentuada condescendência por intelectuais brasileiros considerados progressistas. A própria reedição recente do livro desse criminalista salienta que, segundo Mário de Andrade (1893-1945), "se as conclusões a que chegou sobre o negro e o mestiço caíram com as teorias raciais do seu tempo, a documentação mantém todo o seu valor, pela sua qualidade e pela situação histórica", e que, segundo Édison Carneiro (1912-1972), "Nina Rodrigues supunha honestamente estar colocando o problema das nossas populações em nível científico. (...) Pela primeira vez se tratou com elevação e dignidade científicas um tema desprezado pelos homens de ciência. O estímulo que este livro comunicou aos estudiosos brasileiros talvez ainda não se possa avaliar em toda a sua força, mas pelo menos se pode dizer que, a partir do seu aparecimento, uma atitude científica se impôs no estudo dos problemas da população de cor."

Esse juízo escandaloso, que bastaria para desqualificar quem o proferiu, transparece na Antologia do Negro Brasileiro, editada por esse autor. O primeiro artigo apresentado é o estudo de Artur Ramos, "Os estudos negros e a Escola de Nina Rodrigues" (págs. 3-5). Sem uma menção sequer dos pressupostos racistas de Nina Rodrigues, constata que as suas pesquisas "influenciaram tôda uma geração de estudiosos do assunto, no Brasil ou fora dele. Era uma Escola que se definia e se propagava. Duas idéias fundamentais (...) caracterizaram essa escola. A primeira era a de que é impossível compreender os negros no Novo Mundo sem o estudo sistemático das suas culturas de origem, na África. O método etnológico corrigindo as deficiências do método histórico. A segunda idéia era a do contacto de povos e culturas no Novo Mundo (...). Os pesquisadores brasileiros que vieram depois de Nina Rodrigues seguiram-lhe as pegadas e seus nomes já enchem uma biblioteca de incontestáveis méritos. / Esses estudos contemporâneos (...) na sua quase totalidade se filiam à Escola de Nina Rodrigues." (pág. 5)

Esse estudo pretendia ser um Memorandum a ser apresentado à Conferência Inter-Americana sôbre Estudos Negros que deveria ter sido realizada no Haiti, em 1942. Na caracterização das idéias fundamentais dessa Escola feita por Artur Ramos constata-se a ausência absoluta de toda e qualquer referência ao processo histórico de mais de 500 anos de intensos contactos de Portugal na Costa da África, a qual possui, em várias de suas regiões, uma história de relações culturais com a Europa mais longa que o próprio Brasil.

Tudo indica que manteve-se a situação criticada por Nina Rodrigues, - uma certa tendência ao rebaixamento dos vínculos com Portugal e valorização sentimental de tudo aquilo que possa sugerir elos com a África -, agora porém misturada com convicções de suposta originalidade e autenticidade decorrentes de hipóteses de sua própria "Escola".

Os preconceitos e as leviandades pretensamente científicas fazem-se sentir também no campo musical. Já entre os trabalhos apresentados ao Primeiro Congresso Afro-Brasileiro no Recife, em 1934, encontra-se um artigo de Nair de Andrade sobre a "Musicalidade do escravo negro no Brasil", onde se encontra a afirmação:

"As tribus tão depressa aprendiam os bemditos, quanto rapidamente esqueciam as velhas lendas. As bugigangas, vindas de outras terras, tomavam mesmo a imaginação do selvagem, absorvendo-o por completo. / O portuguez na lucta insana de conquista atravez dos mares não levava em grande conta o desdobramento artistico. Para isto não dispunha aliás de grande elemento." (Novos Estudos Afro-Brasileiros, II tomo, Rio de Janeiro, 1937, ed. facs. Recife, 1988, págs. 194ss, 195).

As correntes de investigação e de pensamento que se filiam a essa escola antropológico-patológica devem portanto vir a ser, numa nova fase do estudo da cultura no mundo de língua portuguesa, alvo de rigoroso exame crítico, quer nas suas premissas teóricas, quer nos resultados de investigações e reflexões, quer nos modêlos interpretativos apresentados.

Estas aqui delineadas correntes do pensamento não poderiam deixar de exercer influência em Alagoas. As tradições alagoanas que podem vir a ser postas a serviço de tais correntes exigem, portanto, particular atenção.

(...)

 

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