Timbre Correspondencia Euro-Brasileira

Prof. Dr. A. A. Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e curadoria científica
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N° 06 (1990: 4)


 

Locomotivas no BrasilDebates e polêmicas: Questões da atualidade

Vias de comunicação e o estudo da música nas relações culturais

20 anos da viagem de estudos ao Leste e Nordeste do Brasil

 

ESTRADAS DE FERRO E VIDA MUSICAL NO
INTERIOR BAIANO PELA PASSAGEM DO SÉCULO

 

Antonio Alexandre Bispo

 

Cachoeira de Sao Felix Bahia 1972
Viagem de pesquisas ao Leste e Nordeste do Brasil: Sessão de Cachoeira 1971/72
No número 5 da Correspondência Musicológica foram feitas algumas "achegas para a história da música de banda no litoral sul da Bahia no seu relacionamento com a vida musical do Recôncavo". O estudo da rêde de contactos existente entre os músicos das várias cidades baianas, do intercâmbio de peças do repertório e das influências mútuas exercidas na prática de execução e produção na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX não pode ser realizado sem a consideração das vias de comunicação existentes, dos caminhos, das ligações fluviais e marítimas e, em particular, das estradas de ferro.

A primeira estação de estrada de ferro da Bahia, provisória, foi construída em 1859 (foto em Gilberto Ferras, A Fotografia no Brasil, 1840-1900, Rio de Janeiro, 1985, 128). As ferrovias determinaram o florescimento cultural de determinadas cidades e regiões e a consideração de seu trajeto pode auxiliar no trabalho de definição de áreas e sub-áreas de inflouência de determinados mestres e de difusão de composições. Essa consideração também pode auxiliar na tentativa de reconhecimento das relações musicais estabelecidas entre cidades da Bahia, do Espírito Santo, de Minas Gerais e de Sergipe.

Sao Felix BA Estacao
Estação de São Félix
Quanto às relações com cidades de Espírito Santo e Minas Gerais, deve-se lembrar aqui da pouco estudada ferrovia que atingia Caravelas. Pela passagem do século, enquanto Porto Seguro tinha ca. de 1000 habitantes, Caravelas já apresentava uma população de 3000 pessoas. A estrada de ferro passava pela Colonia Leopoldina e Serra dos Aimorés, levando ao território das colonias do Mucuri em Minas Gerais. Nessas colonias, situadas nas partes superior e média do rio Mucuri e também na região do Rio Doce, viviam alemães, suíços, holandeses e imigrantes de outras nacionalidades. A colonização dessa região se processou porém do sul para o norte (Santa Isavel em 1849 com colonos do Reno e Hunsrück; Santa Leopoldina em 1851 com prussianos, saxões, suíços, tiroleses, franceses e belgas). Um possível relacionamento de músicos de língua alemã com músicos brasileiros ainda necessita ser investigado. Principalmente os italianos, que se dedicaram intensamente ao cultivo da música para banda, parecem ter exeercido influência marcante no meio brasileiro da região. A principal cidade era Teófilo Otoni (Philadelphia) em Minas Gerais. Essa ligação ferroviária criou as condições econômicas que permitiram o apogeu da prática de banda na cidade baiana de Caravelas (e também de Prado e Alcobaça), sendo o principal mestre local, Cláudio Hortênsio da Silva, funcionário da ferrovia (dados a respeito no número 5 deste órgão).

Duas linhas ferroviárias da Bahia (extensão em 1908: 1363,356 quilômetros, apenas inferior a São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) assumem particular interesse no estudo da vida musical do Interior: a ligação com Joazeiro no Rio São Francisco e, principalmente, a de São Félix.

Cachoeira e São Félix, às margens do Rio Paraguassú, possuíam, juntas, pela passagem do século, uma população de ca. de 20.000 habitantes e a ferrovia levava a Santa Isabel (hoje Mucugê) na Serra do Sincorá. São Félix ligava-se, portanto, a cidades do interior, como Lençóis, centro das Lavras Diamantina, região há muito considerada como sendo de particular interesse nos meios dedicados aos estudos da cultura musical (cf. Mons. Manoel de Aquino Barbosa, "As lamentações das Lavras", A Tarde, 15/03,1935; Retalhos de um Arquivo, Salvador, 1972, 106-109). Lençóis contava com ativas corporações musicais ("Oito de Dezembro", filiada ao partido liberal, "Dois de Julho", filiada ao partido conservador) e é ainda hoje conhecida em toda a Chapada pela sua "Lira Popular de Lençóis", fundada em 3 de março de 1900 (Cf. M. Salete Petroni de Castro Gonçalves, Garimpo, devoção e festa em Lençóis, BA, São Paulo, 1984, 180).

Pela passagem do século, a região da Chapada caracterizou-se por uma situação de violentas lutas políticas (cf. Claudionor de Oliveira Queiróz, O Sertão que eu conhecí, Série Cultura Baiana 3, Salvador, 1985), na qual as bandas desempenharam papel importante. Cachoeira estava ligada por ferrovia com Feira de Santana, talvez o mais importante centro musical da região e "escola" de inúmeros músicos de banda das mais diversas cidades. O repertório da "Sociedade Vitória" de Feira de Santana incluiu durante décadas obras do compositor cachoeirense Antenor Bastos, filho do renomado mestre Tranquilino Bastos ("Hino Municipal", dobrado "Severo", marchas fúnebres (Números 10,11,16,32). Obras de Antenor Bastos também eram executadas por outra corporação de Feira de Santana, a "Sociedade 25 de março" (fantasia "Magnolia", marcha "Moslova") e pela Filarmônica "Lira dos Artistas" de Santo Amaro da Purificação" ("Raio de Ouro", fantasia "Quo vadis").

Uma das razões da importância de Feira de Santana no contexto da vida musical das bandas reside no fato de ter sido ponto final ferroviário, local de intenso comércio com as chapadas e os sertões, centro de distribuição de produtos europeus (também musicais) paroa o interior. Como porto final da navegação pelo rio Paraguassú, Cachoeira tinha sido, até a construção, pelos ingleses, de linhas ferroviárias para o interior, centro comercial de importância e a sua vida musical (época de Manuel Esmeraldino do Patrocínio, 1800-1877) tinha sido também referencial para a de outras cidades circumvizinhas, como, por exemplo, Maragogipe.

O grande representante da música de Cachoeira pela passagem do século foi Irineu Sacramento, autor do Hino a Cachoeira. Nessa época, Cachoeira já apresentava sinais de relativa decadência, dado que as grandes feiras tinham passado a ser feitas nos terminais da ferrovia e a vizinha cidade de São Félix, devido às atividades da firma Dannemann, havia-se tornado centro musical de cunho europeu. Alí eram cultivadas músicas de salão importadas da Europa, além de obras de compositores alemães, como Schumann e Mendelssohn (cf. Ernst von Hesse-Wartegg, Zwischen Anden und Amazonas, 1915, 106). O próprio Antenor Bastos, de Cachoeira, compôs um dobrado oferecido ao imperador da Alemanha (dobrado "Rei Guilherme").

A linha ferroviária que ligava Bom Jardim a Santo Amaro da Purificação, então com 11000 habitantes, também não deve deixar de ser considerada nos estudos da história da música desta última cidade, então ainda famosa pelo renome do antigo mestre-capela Domingos de Faria Machado (1819-1872) ("Novena de Nossa Senhora da Purificação"). Foi em Santo Amaro que Osório Marcelino de Oliveira, músico da Polícia de Salvador, recebeu sua formação musical (fantasia "Força do Amor", marchas "Virgem das Pérolas", "Almas irmãs", "Ricardina", "Esterlina", "Anita", valsa "Augusta").

A Estrada de Ferro da Bahia e São Francisco, empreendimento de uma companhia acionária inglesa dentro do projeto de ligar a região do Rio São Francisco com o litoral, deveria atingir Joazeiro. Os trabalhos, iniciados já em 1858, foram realizados em etapas. Ao redor de 1870 estava nas proximidades de Santo Antonio das Alagoinhas (dados a respeito dessa ferrovia em J. Wappäus, Handbuch der Geographie und Statistik Brasilien, Leipzig, 1871, 1468-1469), cidade que viveu, na época, um florescimento na vida musical. O grande nome da história da música dessa cidade foi José da Luz Passos, autor que se dedicou também à recuperação de obras do passado (Cf. A. A. Bispo, José da Luz Passos, Motetos de Alagoinhas, São Paulo: Instituto Musical de São Paulo 1973; "Os motetos para os Passos da Procissão do Senhor compostos pelo Padre Theodoro Cyro", Boletim da Sociedade Brasileira de Musicologia, 2, Separata). Obras de músicos de Alagoinhas, como o dobrado "Sisinio Alves Moreira" de Isaías G. Any, foram encontradas no repertório de bandas de várias cidades, também em Feira de Santana.

Manoel Jose Alves Estrada de Ferro da BahiaAinda mais do que o telefone ou o bonde (cf. J. Ramos Tinhorão, "O Bonde no Carnaval, com bibliografia e notas", Música Popular: Um tema em debate, Rio de Janeiro, 1966, 139-166), o trem inspirou numerosas composições musicais e não foram só escritos dobrados e marchas para a inauguração de linhas ou peças de banda dedicadas a pessoal de estação. Na música de salão e na produção de amadores e iniciantes empregou-se freqüentemente recursos musicais de cunho descritivo dos ruídos de locomotivas, de apitos e do movimento de partida, aceleração e parada dos trens. V. Cernicchiaro (Storia della musica nel Brasile, Milano, 1926, 397) cita a polka "Caminho de Ferro" composta pela pianista francesa E. de Barry e a apresentada no Rio de Janeiro em 1865 (!).

Guardadas as devidas proporções, tem-se aqui intenções semelhantes manifestadas em várias obras da literatura universal. Assim, "Pacific 231" contribuiu para o renome de Arthur Honegger (1892-1955) e a Tocata da Bachiana Brasileira N° 2 é uma das mais aplaudidas, assim como "O trenzinho" (Canto Orfeônico, 2, São Paulo, 1951, 61-68) uma das mais cantadas composições de Heitor Villa-Lobos.

Para a região aqui considerada, cita-se a quadrilha "Estrada de Ferro da Bahia", de Manoel José Alves (sobre a popularidade das quadrilhas nos saruas baianos cf. Antônio Vianna, "Da Berlinda à Quadrilha", Casos e coisas da Bahia, 2a. ed., 1984, 116-118). Essa peça faz parte da coleção "soirées brazileiros" da Casa Arthur Napoleão do Rio de Janeiro (N° 2243) e parece ter sido composta nas últimas décadas do século passado. O compositor, Manoel José Alves, não pode ser o compositor português José Manuel Alves, nascido em Monção em 1907 e chegado ao Brasil apenas em 1929.

 

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